Uma digressão pelo Mali

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O Mali é um país fascinante, diverso nas suas paisagens e culturas. É terra de grandes cantores e músicos tradicionais, que tocam a corá, um instrumento ancestral feito a partir de uma grande cabaça, das máscaras e estatuetas dogon, berço da cidade de Timbuktu, uma referência histórica ímpar em matéria de estudos islâmicos. Durante quatro séculos, até 1670, o Mali foi o epicentro de um grande império na África Ocidental, um império reconhecido pelos exploradores portugueses, que com ele mantiveram trocas comerciais de envergadura, através do rio Gâmbia. Acrescento ainda que tive, na ONU, vários colegas malianos, que se revelaram excelentes profissionais e que ocuparam postos importantes nas diferentes organizações multilaterais. Escrevo isto para me premunir de opiniões sumárias, dos que têm o hábito de arrumar tudo o que é africano num canto escuro, à sombra dos preconceitos habituais. Fico triste, como muitos outros, quando vejo o país a esfrangalhar-se e a tornar-se inseguro, como continua a acontecer diariamente.

O Mali voltou a ser notícia, nas últimas três semanas, no seguimento do golpe militar de 18 de agosto. É, pela mesma razão, objeto de debate, incluindo em círculos europeus. Mais ainda, alguns teóricos das conspirações viram a mão de Moscovo por detrás dos coronéis que tomaram o poder, uma hipótese que considero improvável. Mas há outras mãos a mexer no Mali, da França à Arábia Saudita, e com intenções muito diversas.

Também está em jogo o papel das Nações Unidas, que mantêm no país uma missão de paz desde 2013, com mais de 15 mil elementos. MINUSMA, assim se chama a missão, tornou-se, com o tempo, um caso de estudo por não ter sabido responder às questões políticas e de governação que estão no centro dos problemas que o Mali vive. A direção política da missão resolveu, para agradar aos franceses e por oportunismo estratégico, colar-se ao presidente que o golpe de Estado agora depôs. Em Nova Iorque, no Conselho de Segurança, ninguém teve a coragem de corrigir esta trajetória. Assim se perde a credibilidade e se hipoteca o futuro.

Voltando ao debate atual, tem faltado sublinhar que mais de dois terços da população do Mali tem menos de 25 anos de idade. E que a educação e a economia são incapazes de responder aos desafios que uma pirâmide de idades deste tipo acarreta. Quando estive pela primeira vez no Mali, em 1990, a sua população total rondava os oito milhões e meio. Hoje, trinta anos passados, está próxima dos vinte milhões. O mesmo acontece nos outros países da região. Todos têm pirâmides etárias explosivas. A pressão demográfica cresceu em todo o Sahel a par e passo com o avanço da desertificação e da pobreza. Ser-se jovem no Sahel significa olhar para o futuro e ver apenas uma imensidão de políticas áridas, um deserto de oportunidades e um habitat urbano caótico e inumano. Assim, é difícil haver esperança e paz social. Resta a migração com destino à Europa, ou então a aderência ao banditismo armado e às rebeliões fanáticas. O fanatismo cresceu de maneira exponencial, na última década, graças nomeadamente à proliferação de mesquitas, de escolas corânicas wahabistas e de pregadores radicais, tudo financiado pelos sauditas e outros do género.

Os que não emigram nem se juntam aos grupos extremistas vegetam nas grandes cidades, onde podem observar como as desigualdades sociais se tornaram gritantes, fruto da corrupção que prevalece nos meios políticos, nas forças de segurança e na administração da justiça. Veem ainda que os países europeus e outros atores internacionais fecham os olhos às manigâncias praticadas pelos poderosos. Foi isto o que aconteceu no Mali. Após meses de contestação popular contra a indiferença do presidente e a avidez dos seus, um grupo de oficiais superiores resolveu agir. Têm o apoio popular, pelo menos por enquanto. É verdade que não se deve apoiar golpes anticonstitucionais. Mas é igualmente verdade que não se pode continuar a fingir que não se vê a corrupção, a inépcia e a falência da administração territorial, com vastas zonas do espaço nacional sem qualquer presença do Estado. A mitigação das crises começa pela promoção da probidade e pela restauração do poder local, para além do tratamento das questões da juventude. É isso que importa lembrar aos coronéis, aos líderes da região, ao Conselho de Segurança da ONU e aos parceiros europeus do Mali, Portugal incluído.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-representante especial da ONU

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