"Uma década de dureza" para chegar a chef e "uma vida de dedicação"

Uma conversa na Fortaleza do Guincho com Rui Paula e Miguel Rocha Vieira, em que os estrelas Michelin, falam do seu percurso e do que é preciso para chegar ao topo
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A passagem por Lisboa do vencedor do MasterChef Canada, o açoriano David Jorge, foi a desculpa perfeita para os chefs que decidem quem passa e quem perde o avental na edição portuguesa do concurso se juntarem. Na Fortaleza do Guincho, a convite de Miguel Rocha Vieira, o único chef português que teve três estrelas Michelin em simultâneo - uma pelo Costes, outra pelo Costes Downtown, ambos em Budapeste, e outra na Fortaleza do Guincho, onde chegou em agosto de 2015 -, juntaram-se o colega de profissão e de concurso Rui Paula e David Jorge a trocar receitas. "Nós fizemos um arroz de lavagante assim caldoso, a puxar às nossas memórias - quisemos mostrar o lado tradicional, o refogado, as raízes da cozinha portuguesa -, e ele optou por um prato mais elaborado, mais MasterChef, com vieiras que trouxe do Canadá e um puré de cenoura", conta Rui Paula, cuja Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira, lhe garantiu também a estrela que há muito merecia.

O vencedor do MasterChef Canada não está ali. Mas é sobre ele que falamos, na esplanada sobre o mar com um copo de vinho branco para refrescar. "Está a ver a diferença? O David venceu o concurso há ano e meio e já tem três restaurantes em Vancouver - prepara-se para abrir o quarto. É outra realidade..." Uma questão de escala, que é determinante, ainda que o chef portuense (transmontano de coração) reconheça que também aqui o MasterChef muda a vida dos concorrentes que ali se destacam. "Alguns abrem restaurantes ou são convidados para cozinhas... Há muita qualidade nos nossos candidatos. Das duas edições de adultos que houve, pelo menos metade de cada grupo de 20 estão hoje ligados à gastronomia", junta Miguel.

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Ambos gostam de fazer o programa, de ensinar as bases da cozinha tradicional e ir moldando e vendo os candidatos responder a desafios cada vez mais exigentes, surpreender com técnicas complexas. Também já passaram momentos que hoje os fazem rir: "Provar comida horrivelmente feita, um arroz cru em que não deixaram evaporar o vinho, umas vieiras estragadas", lembras-te disso, Miguel? "Mas também provamos coisas boas e até já tivemos ideias para pratos", responde o chef da Fortaleza do Guincho. Reconhecem que nenhum deles era capaz de participar hoje num MasterChef. "Eu nem para cozinhar em casa de amigos... quero é que cozinhem os outros!" Rui Paula arranca a primeira gargalhada à mesa, e continua: dizem-me que é uma grande responsabilidade cozinhar para mim, mas eu respondo logo que quero é um arrozinho de cenoura e um bifinho bem feito - isso toda a gente sabe fazer.

Até uma criança? Não têm problemas em reconhecer que se surpreenderam tremendamente com os miúdos que lhes passaram à frente no MasterChef Júnior. E até tiveram com eles ideias para novas receitas. "Há umas semanas fomos a um evento em Fernando Noronha, no Brasil", começa Miguel - "Uma beleza de sítio, mas nunca comemos bem", diz Rui Paula. "Era tudo uma confusão, sem raízes gastronómicas, peixe congelado, nem se percebia que tipo de comida era..." Miguel concorda e continua: "E a pré-sobremesa que fizemos foi de uma ideia que tirámos do MasterChef Júnior, a que depois demos o nosso toque. Era um arroz-doce com leite de coco que foi ideia de uma miúda de 10 ou 11 anos! Há miúdos incríveis, impressionantes."

Rui Paula concorda: "Puxa, como é que com 8 anos se tem noção do ponto de uma carne ou de como se faz um caldo? Eu com 10 anos fazia torradas!" Homem do Norte que é, fala sem filtros, ri alto e faz rir quem o escuta. Mais contido, Miguel Rocha Vieira oferece uma explicação: "Há meia dúzia de anos, nenhum miúdo tinha o sonho de ser chef. Esta mudança acontece também à boleia do MasterChef."

Rui oferece outro argumento - agora o tom é muito sério: "Num país como o nosso, onde a indústria é residual mas o clima é bom, temos bons produtos e boa gastronomia, é bom que se perceba que é esta a vertente que temos de explorar. Temos vinhos, que estão associados à gastronomia, bom azeite, bom peixe e marisco, carnes, vegetais. Temos de aproveitar o que temos. A linha política a definir é esta." E ainda há muito caminho pela frente. Até porque quem sai das escolas de hotelaria que há no país "não vem minimamente preparado", assegura. A razão principal? "Não trabalham com produtos como deve ser e alguns nem sabem distinguir um robalo de outro peixe qualquer. E depois há um problema: os miúdos começam a trabalhar e acham logo que vão ser chefs. Mas é preciso abdicar de muita coisa. Ainda hoje eu abdico de tudo; nós não temos horas, folgas..." Miguel concorda: "A malta nova acha que ser chef é aparecer na televisão, dar entrevistas, conduzir grandes carros - e não é nada disso. Até lá chegar não há atalhos, há uma década de dureza - que depois se torna um estilo de vida. Nós muitas vezes nem damos conta de que estamos a trabalhar..."

Reconhece porém que houve mudanças para melhor nos últimos anos, "sobretudo na forma de lidar com as equipas, já não há aqueles gritos, a confusão, hoje é tudo organizado e sereno numa cozinha - mas em relação às horas, à solidão que se sente por vezes e à dedicação não há volta a dar. Há quem trabalhe só oito horas por dia, mas tudo depende se queres jogar na Champions ou na segunda liga." Desta vez é Rui Paula que solta uma gargalhada - gostou da comparação e há de aproveitá-la mais adiante.

O trabalho de chef pode ser "solitário" e até gerar momentos de "frustração", mas a nenhum dos dois passa pela cabeça fazer outra coisa. E, ainda que largassem a cozinha, admitem que seria impossível perder a ligação - até porque é aquela a sua paixão. "Pelas estrelas ou pelo dinheiro que se pode fazer não compensa, não dá gozo nenhum vir trabalhar." Já os elogios que recebem são capazes de justificar muitos sacrifícios. "Já me disseram que tinha sido a melhor refeição da vida", "já tive pessoas a chorar, comovidas" e "pessoas que pouparam todo o ano para ir ali", ou "aquelas que dizem que voltaram à infância... isso então é do melhor" - já não estão a falar comigo. Trocam recordações, entusiasmam-se. Depois lembram-se de novo que estou ali: "Mas ficamos satisfeitos com um simples mas genuíno "estava tudo muito bom"." E não há estrela Michelin que compense isso, garante Rui Paula, ainda que assuma que ter ou não ter faz uma grande diferença. "Haverá melhor do que ter clientes no restaurante, vê-los contentes, estarem de férias e irem ao DOC três ou quatro vezes? Claro que as estrelas Michelin contam: na Casa de Chá da Boa Nova, desde que recebemos a estrela, faturamos mais 30% todos os meses. É muito! E é um orgulho. Enquanto reconhecimento do trabalho, é bom para o nosso ego, para o das equipas e para a faturação."

Ambos já conseguiram essa marca. E agora o que falta fazer? "Ir de férias", brinca Miguel. "Eu cá gostava de ter só um restaurante, para poder dedicar-me a ele", confessa Rui Paula. "Mas o que idealizei não dá para fazer aqui, não há mercado - era uma casa que englobasse todos os meus conceitos, com as ideias que tenho na cabeça de cozinhas de preparação à vista dos clientes e de mise en place, arquitetonicamente muito bonito... Outro dia, vi num programa um restaurante nos Estados Unidos onde tudo era feito com o conceito fogo - havia madeiras, pés-direitos altíssimos, caldos feitos a lenha, cozinha à vista... coisa para custar uns oito milhões. Era preciso que estivesse sempre cheio e atendesse 200 pessoas por dia para funcionar - e aqui só se pode ter estrelas a atender 30 de cada vez."

E, naturalmente, assegurar os melhores ingredientes. Onde os encontram? Rui Paula diz que "essa história de os chefs irem aos mercados é show off". Perante os protestos de Miguel, suaviza: "Sim, vamos lá - e se estamos noutra cidade ou país temos curiosidade em conhecer, sentir os cheiros, provar. Mas vamos aos mercados para sentir o que há de novo, não é propriamente para nos abastecermos. Os produtos que servimos temos quem no-los traga, há uma relação de grande confiança com os fornecedores. E eles só trazem o melhor, senão vai para trás." conta que há muitos anos, ainda no Cêpa Torta, um peixeiro tentou vender-lhe umas sapateiras que já tinham visto melhores dias. "Preguei com tudo no lixo, liguei-lhe e disse o que tinha feito e que não ia pagar. Nunca mais ele me trouxe peixe sem ser da melhor qualidade, porque viu que eu ali fazia cozinha tradicional, com simplicidade, mas exigia tudo do melhor." Se este contrato de confiança é garantido da parte do fornecedor por produtos da mais alta qualidade, do lado do chef a principal regra é "pagar religiosamente, sem discutir um euro a mais ou a menos".

De resto, quando estão na cozinha, é da troca de experiências, de outras culturas, de viagens e leituras e sobretudo da memória que lhes vem a inspiração para criar. Desde que sejam pratos salgados, claro, que nos doces a sua intervenção esgota-se nas ideias e na prova. "Dizemos que queremos um determinado conceito e depois fugimos, não vá alguém pedir-nos para o fazer", riem-se. "Respeito muito a pastelaria, é o meu calcanhar de Aquiles", assume Rui Paula. "Aqui o Miguel até tem esse curso... e eu doces caseiros até sei fazer, mas pastelaria para a Champions tem muito que se lhe diga."

Rui Paula

Tem 50 anos e nasceu no Porto. Estudou Marketing mas a influência dos cozinhados transmontanos da mãe e da avó levou-o a abrir o Cêpa Torta. Só depois fez uma série de estágios. É dono e chef da Casa de Chá da Boa Nova (1 estrela Michelin), do DOC e do DOP.

"Sempre tive jeito para falar com as pessoas e já gostava de cozinhar - fazia pratos para o meu irmão, para amigos, para 10 ou 12 pessoas. Vivíamos numa casa de lavoura muito grande onde havia de tudo. Quando abri o restaurante percebi que tinha de ir aprender porque nem uma terrina de foie gras sabia fazer, sentia-me inferior. Agora isto é uma paixão, tenho imenso prazer em ter os meus restaurantes e trabalhar em gastronomia."

Miguel Rocha Vieira

Tem 39 anos, nasceu em Cascais e é chef da Fortaleza do Guincho. Trabalhou em Londres, França e Espanha, sempre em restaurantes Michelin. Em 2008 abriu o Costes em Budapeste (1 estrela). Mantém-se chef consultor do Costes Downtown (1 estrela) desde que voltou a Portugal, no verão de 2015.

"Vivi cá até ao 12º ano e não sabia bem o que fazer depois. Decidi ir estudar Gestão Hoteleira em Londres - tinha de ter pretexto para sair de casa. No 2º ano tive aulas de cozinha e deu-se o clique. Já nem acabei faculdade: meti-me numa escola de cozinha [a mais prestigiada do mundo, Le Cordon Bleu, onde se formou em cozinha e pastelaria] e trabalhei sempre lá fora até há dois anos."

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