Uma confraria que se faz de amigos e tradição
Encontrar uma marca tão forte de tradição e consistência na apressada, imediatista e desprendida sociedade Facebook não é comum. Sobretudo uma que preza e propaga os seus valores - concorde-se ou não com eles - de forma tão simples, que consegue manter-se sem outro esforço que não a vontade dos que a promovem e dela fazem parte. E é precisamente de tradição, à mesa com os melhores vinhos e pratos de perdiz, que se serve a Confraria dos Mestres Provadores, fundada há quase 30 anos por Fernando de Figueiredo.
É por essa razão que, quando o Menino - designação dada ao fundador e ainda líder deste grupo atualmente composto por 31 confrades - conta que tudo nasceu de um acaso afortunado não podemos realmente acreditar. A verdade é que as suas raízes já existiam ainda antes de os 12 originais discípulos da causa do bem comer, beber e conversar arrancarem formalmente com estes encontros mensais, a 27 de novembro de 1989.
O local onde nos encontramos para escutar a história da boca de Fernando de Figueiredo escolhido como o são os dos encontros da Confraria dos Mestres Provadores: a casa de um amigo e confrade que abre as portas. Desta vez, calha ser o fantástico Hotel Altis, de Raul Martins, um dos confrades regionais (Alenquer e Torres Vedras) que se juntou ao grupo há mais de uma década - projeto em que Fernando também colaborou ("estive próximo de administrações e tenho excelente relação com eles, mesmo porque conheço a família desde o pai, Fernando Martins").
"No fundo, somos um grupo de amigos, alguns que se conhecem há 60 anos ou mais, que se juntam uma vez por mês. Não temos sede, quotas, orçamento ou outros formalismos. Sobrevivemos porque há uma genética comum nos fundadores, hábitos adquiridos e valores de família que nos unem. Somos conservadores no sentido em que pensamos que as coisas são para se manter, para durar, seja um par de sapatos seja uma amizade."
O conservadorismo não se esgota ali, estende-se a um ADN marcadamente católico e monárquico, comum à maioria dos confrades. Nada que impeça a entrada de pessoas que pensam de forma diferente, como o recentemente desaparecido Pedro Coelho, fundador do PS e que chegou a ser secretário de Estado entre 1974 e 1979. "Por vezes a política cria algum frisson à mesa, mas tudo acaba num brinde inventado por um dos nossos confrades: Bendita Confraria que o nosso Menino pariu."
Bom contador de histórias, Fernando de Figueiredo vai entrelaçando episódios da sua vida com a história da Confraria dos Mestres Provadores. Tem uma leveza no trato e um gosto pelo convívio próprios dos mais novos e que ajudam a perceber como fizeram dele o Menino desta casa reservada a homens (mulheres só entram nos jantares de aniversário ou em eventos esporádicos de fim de semana) e de que forma conseguiu manter a cadência mensal dos encontros ao longo dos 28 anos que amanhã celebra a Confraria.
Não é tão simples como parece, mas há uma identificação que ajuda a olear as coisas: uma base familiar em que a mesa e o convívio são valorizados. "É uma amizade agregada à gastronomia", resume Fernando de Figueiredo, e isso justifica que não haja um presidente mas antes seja um Menino quem coordena as coisas.
Mas é sobretudo um grupo onde se promove o culto dos amigos, do convívio que dura, em muitos casos, desde o banco de escola - e que, apesar de a maioria dos confrades andar entre os 70 e muitos e os 83 de Luís Colaço, começa já a abrir-se à nova geração. "O nosso confrade mais novo, que entrou há um ano, é o André Gonçalves, que tem 45 anos." Aproximadamente a idade que tinham os fundadores quando tudo começou.
Um acaso na Rua do Conde
Foi a partir de um convite para uma exposição de tapetes orientais, feito por uma amiga de Fernando, que o destino trabalhou para dar vida à Confraria dos Mestres Provadores. Quando a porta do número 60 da Rua do Prior se abriu, mais do que os tapetes persas foi a "extraordinária coleção de vinhos" do anfitrião que lhe prendeu a atenção. Palavra puxa palavra e Fernando, bom conversador, curioso e observador, saía dali com um convite para voltar com os amigos que o dono da casa lhes serviria um belo almoço.
"Cheguei ao escritório (Fernando trabalha ainda em consultoria imobiliária) e fiz uma lista de 25 amigos que gostavam de comer e beber bem e deixei instruções para que os convites fossem feitos até 11 terem aceitado." A 27 de novembro de 1989, sentavam-se os 12 à mesa pela primeira vez, para tratar de uma sopa de peixe "fantástica" e da perdiz à Convento de Alcântara, regada a Barca Velha de 1966. E o encontro correu tão bem que dali saiu a vontade de tornar aquele convívio de copos, boa comida e melhor conversa regular.
Em cada um dos 12 meses seguintes, na primeira quarta-feira de cada mês, houve um almoço promovido por cada um dos confrades. "Até fevereiro, continuámos a ir à Rua do Conde, mas depois começámos a diversificar entre restaurantes e sobretudo nas casas ou herdades dos confrades." Sempre com a perdiz como prato forte e os melhores vinhos a regar os almoços.
De então para agora, a Confraria foi crescendo - numa primeira fase, cada um propôs um novo membro, depois foram criados os confrades regionais, em representação das várias regiões vinhateiras do país -, mas sem nunca perder o espírito que a caracteriza, mantendo-se por isso um grupo restrito.
"Alguns morreram, outros saíram, como é o caso de um grande amigo que decidiu passar cinco anos a velejar, e hoje somos 31 a reunir-nos nestes almoços mensais." E até já deram origem a momentos divertidos, como o dia em que foram recebidos pelo então Presidente Jorge Sampaio num encontro de confrarias. Sem insígnias que os identificassem e pela ligação gastronómica, decidiram apresentar-se na cerimónia de avental - que ainda usam em momentos solenes. "Quando nos viu naqueles preparos, Jorge Sampaio surpreendeu-se e até nos recomendou cuidado para não sermos confundidos." Fernando ainda se ri do episódio - "se tivéssemos alguma identificação desse tipo, nunca seria a maçonaria".
O simbolismo que se permite
Nascido numa família de cristãos-novos, muito influenciado pelo tio, miguelista convicto, na sua veia monárquica e habituado a uma casa onde o convívio e as conversas de família eram valorizados, Fernando de Figueiredo apaixonou-se pela sociologia não apenas enquanto disciplina dos seus estudos ("naquilo que viria a ser o embrião do ISCTE") mas na prática, nas relações humanas. E talvez venha daí, da possibilidade de aprender e ensinar sempre alguma coisa, este voluntarismo e capacidade de unir pessoas à sua volta.
Grande conhecedor de vinhos e gastronomia, não é de estranhar que tenha escolhido contar a história da Confraria de Mestres Provadores à mesa do Mensagem, no Altis Belém. Faz porém questão de mostrar que são muitos a trabalhar para um mesmo objetivo e é isso que revela quando fala dos poucos símbolos que o grupo criou para sua identificação, com a ajuda de vários confrades. E que, no fundo, representam o primeiro encontro, no número 60 da Rua do Conde: uma perdiz feita brasão - cujo esboço saiu da pena de João Alarcão - que está gravado na tambuladeira (espécie de concha para degustação de vinhos) que acompanha sempre os encontros.
O simbolismo está lá: a ave de perna traçada e com um copo de vinho na asa, em representação do prato original e do Barca Velha com que se brindou nessa ocasião, a coroa a encimar o brasão a recordar o local original - a Rua do Conde - e a fechar o brasão a grinalda Em flagrante delitro (da autoria de Jaime Lança de Morais). Há ainda uma Magna Carta feita por José António Martinez onde se definem os princípios que regem a Confraria dos Mestres Provadores e, logicamente, os Estatutos, criados por Luís Pires de Lima. Entre os ilustres confrades contam-se ainda nomes como o de Diogo Saraiva e Sousa, Francisco Van Uden, José Bento dos Santos, João Portugal Ramos, António Francisco Avillez ou Afonso de Bragança, o duque de Lafões.
Não são porém os nomes, mas os valores que aqui mais pesam e que tornam este grupo extraordinário. Além de um grande gosto e respeito pelo vinho - o que não será de estranhar, dado que vários dos confrades são produtores e enólogos e que foi a coleção extraordinária do primeiro anfitrião, a cobrir as prateleiras daquela casa do bairro da Lapa, que deu origem a esta confraria.