Só à noite vejo ruas vazias. De dia há trabalhos, pessoas que se deslocam para adquirir víveres ou para manutenção da saúde física e mental - e isto é de uma simbologia inquietante. O confinamento parece reduzir a existência humana a uma expressão mínima: trabalho, corpo, sanidade, alimentação. Alimentação do corpo. Sobrevive-se, vive-se menos..Aquilo que nos torna diferentes, o ócio, o lazer, o convívio, os afetos para lá do núcleo familiar, as amizades, a cultura, processa-se agora digitalmente, ou não se processa de todo..Há filtros entre nós e os outros, entre nós e a cultura. A experiência presencial da arte - o confronto com o outro, com a sua respiração, a sua energia vital - foi relegada, suspensa, dada como não essencial. Percebe-se: está em causa a sobrevivência, de facto. Se não de cada um de nós, de muitos, demasiados, e do próprio sistema em que vivemos..À noite vemos a Netflix, encontramos na internet experiências artísticas ou assistimos a espetáculos na RTP2. Mas isso, que é bom, não é tudo, não é suficiente, pode nem ser determinante, se for único..Uma cidade como Vila Real, como as outras, precisa do seu Teatro para se ligar ao mundo. Há boa ligação por cabo aqui, e boas vias de comunicação. Mas o sentimento de verdadeiramente nos ligarmos, fazermos parte de outras possibilidades de existência e maneiras de ver o mundo ocorre quando estamos na presença dos artistas..A experiência da alteridade precisa da proximidade aos corpos para não ser fantasia. Um documentário na TV pode parecer ficção se comparado com uma peça ao vivo. Continuamos a ser espectadores do mundo, mas só ao vivo nos implicamos nele..Há oportunidades a agradecer no confinamento, os que pudermos desfrutar delas sem a inquietação da falência, do desemprego, da fome ou da morte. Podemos voltar a ser leitores assíduos, reparando o maior erro que a humanidade comete, o ato suicida civilizacional de se afastar dos livros. Regressar aos livros devia ser o novo normal..Podemos aproveitar a pausa para criar uma tal ânsia de artes para que depois não mais os trabalhadores do setor fiquem desamparados, porque haverá finalmente um público correspondente em quantidade e interesse ao valor da criação nacional, e porque a República se obrigará a encontrar maneiras de garantir cidadania plena àqueles trabalhadores e a lembrar-se de que o ser humano é mais do que trabalho, corpo, alimentação. E alienação..Comecemos por questionar que sinal se quer dar quando fecham teatros e há exceções na televisão (essa pandemia fatal de frivolidade). O que queremos que predomine depois do confinamento?.Diretor do Teatro Municipal de Vila Real