Uma casa de pão e de cultura

Nasceu em 1904, com o empenho da rainha D. Amélia, para fazer pão que era vendido mais barato aos pobres das freguesias lisboetas de Santa Isabel e Campolide. Durante o regime de Salazar transformou-se num foco de resistência. A Cooperativa Padaria do Povo pretende voltar a ser uma casa de cultura.
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CORRIA O ANO de 1904 e boa parte da sociedade portuguesa já não morria de amores pelo regime monárquico, que aliás só resistiria até 5 de Outubro de 1910.  A rainha D. Amélia – mulher do penúltimo rei de Portugal, D. Carlos I, que a 1 de Fevereiro de 1908, no regresso de Vila Viçosa, viria a ser assassinado no Terreiro do Paço – terá tido uma ideia do tipo dois em um. Com o seu empenho na criação da Cooperativa Padaria do Povo socorria os pobres das freguesias lisboetas de Santa Isabel e Campolide e tentava ganhar alguma simpatia popular para um regime que tinha os dias contados.


Cento e cinco anos depois, a Padaria do Povo ainda existe no bairro de Campo de Ourique, mas  o seu propósito inicial – fornecer pão mais barato aos pobres – já acabou há umas seis décadas.  E de instituição de socorro social, transformou-se numa dessas casas que foram preferencialmente servindo propósitos culturais e de lazer. Quer dizer: instalado Salazar no poder, a Cooperativa Padaria do Povo tornou-se objectivamente um lugar de Oposição. E por isso mesmo, o regime caído a 25 de Abril de 1974 esmerou-se em dificultar-lhe a vida. Um dia, a generosa biblioteca foi mesmo dali retirada. Mas, malhas que o império tece, como escreveu Fernando Pessoa, que viveu a dois passos da Padaria, eis que ela foi parar a outra casa que não morria de amores pelo regime, a Voz do Operário, onde ainda hoje lá está.


Zaluar Basílio, professor universitário,  preside hoje interinamente à  instituição. Nas últimas eleições, no ano passado, foi candidato à vice-presidência na lista em que mais uma vez era candidato à presidência Lopes Vítor, que durante sucessivos mandatos esteve à frente dos destinos da  padaria. Acontece que Lopes Vítor, de 87 anos, nunca chegou a tomar posse de mais esse mandato: impossibilitado, vive agora no lar da Casa do Artista. E Zaluar Basílio, por força desta circunstância, preside interinamente à instituição.


«Queremos reanimar a padaria», diz à NS’. Implícito está o reconhecimento de que nos últimos anos a casa foi morrendo, como aliás aconteceu a outras instituições desta natureza. Os espaços onde antes se desenvolvia intensa actividade cultural foram aos poucos sendo reduzidos a paredes para uns copos ou jogatana. Curto e grosso: as paredes da Padaria do Povo chegaram a motivar de alguns vizinhos sucessivas queixas por... má vizinhança.


Joaquim Martins [ver caixa] há anos que não punha os pés nas instalações. A pedido de Zaluar Basílio, interrompeu essa ausência para falar com a NS’. Não tem papas na língua, e a coisa traduz-se assim: é urgente uma limpeza e a retoma dos serviços que a Padaria do Povo já prestou, e não apenas ao bairro onde nasceu. Mas não será fácil. Parte das instalações estão alugadas a uma empresa de transportes cujos veículos ocultam quase diariamente a bela fachada do edifício. Outro espaço está alugado a uma casa regional, que na verdade já não funciona. Contas feitas, diz Zaluar Basílio, para devolver a Cooperativa Padaria do Povo ao esplendor que hoje ninguém vê, será preciso chegar a acordo com essas entidades. Mas há um problema suplementar: políticas de gestão anteriores fizeram desses inquilinos simultaneamente cooperantes da Padaria do Povo. O presidente interino reconhece que desembrulhar este nó não será fácil.


Em tempos, funcionou na padaria a chamada Universidade Popular [ver caixa]  criada por Bento de Jesus Caraça, o célebre matemático sobre quem Fernando Pessoa  escreveu ser «um camponês que andava preso em liberdade pela cidade». Em tempos houve muitas e variadas sessões culturais, e ainda hoje gente com 50 anos mal medidos ali pôde assistir a sessões de cinema. Em tempos houve bailes (que hoje ainda há). Quase todo esse passado está em stand by, e a aposta dos actuais responsáveis é recuperar o tempo perdido. Não o de Proust, mas o da Padaria do Povo.


Da Trafaria para Campo de Ourique por... receita médica


Num universo de 524, Joaquim Martins é hoje o cooperante n.° 5 da Padaria do Povo. Este número cabe-lhe evidentemente por obra e graça de sucessivas renumerações.


«Vim viver para Campo de Ourique por receita médica», diz. Não é uma piada. Os ares de Campo de Ourique eram propícios à cura das maleitas pulmonares, e a família de Joaquim Martins, que ainda era menino e moço, abalou da Trafaria, onde nasceu, para aquele que viria a ser um dos mais simpáticos bairros de Lisboa. Campo de Ourique é um bairro auto-suficiente, reconhece, nem hospital nem cemitério lhe faltam.


Joaquim Martins não nasceu aqui mas é como se aqui tivesse nascido. «É o meu bairro, e a Padaria do Povo foi durante muitos anos uma espécie de minha casa», deixa escapar.


Há muito que não punha os pés na sede da cooperativa, nada agradado com o menos bom ambiente que ali foi crescendo, designadamente no bar, concessionado  a um cooperante. Aceitou voltar ali e manifestou o desejo de que o tempo volte para trás. «Esta casa não pode morrer», diz.

A Universidade Popular de Bento de Jesus Caraça


Em 1919, Bento de Jesus Caraça e António Ferreira de Macedo fundaram a chamada Universidade Popular. Começou por ocupar umas salas da cooperativa, que lhe foram cedidas, e em 1924 passou a ser inquilina.


O matemático tinha apenas 18 anos quando entendeu criar aquela que tendo o nome de universidade era antes uma estrutura de nomes que periodicamente davam conferências sobre temas muito diversos.  Os destinatários eram preferencialmente aqueles que não tinham tido tempo de chegar à universidade,  ou ao liceu ou nem mesmo à escola primária.


João Caraça tinha dois anos e meio quando Bento de Jesus Caraça, seu pai, morreu, em 1948. O professor universitário e actual director do Serviço de Ciência da Fundação Gulbenkian não tem, por isso, nenhuma  memória familiar dessa actividade do seu pai, mas reconhece que a  ideia de uma  Universidade Popular  «é muito interessante, corresponde  aos ideias de esquerda que nas décadas de 1910 a 1930 se traduziram em muitas iniciativas dessa natureza».  A retoma de iniciativas deste género pela Padaria do Povo parece-lhe por isso uma óptima ideia. E até o nome lhe agrada mais do que o «mais redutor» das actuais Universidade Seniores. «A ideia de Universidade Popular é abrangente, e hoje como ontem contribui para a emancipação das pessoas pelo conhecimento», adianta.


A Universidade Popular não era bem-vista pelo regime de então. Por lá passavam muitos nomes pouco dados a vénias ao Estado Novo. E em 1946 todas as conferências foram proibidas.

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