Gorros, luvas e casacões, fitas verdes ao pescoço com os nomes, um grupo de alunos ignora a espessa camada de neve que as cobre e continua a subir e a descer as escadas do Monumento a Lincoln, no final do Mall, a enorme alameda de Washington. Ao todo, são 250. Vieram da Florida em cinco autocarros e para a maioria é a estreia na capital federal dos EUA. "O shutdown? Não, não nos está a incomodar nada. Mas acabámos de chegar", garante Mary Nann, uma das professoras que acompanham o grupo. Trazer os alunos a Washington é uma velha tradição, explica, ela também de fita verde ao pescoço. Sobre política prefere não falar muito, mas admite que este terceiro ano da era Donald Trump, que começa neste domingo dia 20, promete ser "interessante". E segue para junto dos alunos, que começam a juntar-se para uma fotografia de grupo na escadaria, com o espelho-de-água, o obelisco do Monumento a Washington e, mais ao fundo, o Capitólio como cenário..É ali, no Capitólio, que se deu a maior mudança desta que vai ser a segunda metade do mandato de Trump. Depois das eleições intercalares de novembro, foi uma Câmara dos Representantes de maioria democrata a que tomou posse no início deste mês. O Senado, esse, continua republicano, com o partido do presidente Trump a ver até reforçada a sua maioria. E se alguém duvidasse de que uma Câmara democrata ia ser uma dor de cabeça para o presidente, basta olhar para os efeitos daquele que é já o mais longo shutdown da história dos EUA. Há quase um mês que o governo federal está parcialmente encerrado devido ao braço-de-ferro entre os democratas e Trump em torno do muro na fronteira com o México. A oposição recusa aprovar os 5,6 mil milhões de dólares de que o presidente precisa para cumprir a sua mais vistosa promessa de campanha. E os efeitos são bem visíveis na capital - e sobretudo no bolso de muitos funcionários federais. Mayra de Lassalette é uma das afetadas. A jornalista está a trabalhar, mas não é paga. "Somos considerados funcionários essenciais, por isso temos de ir trabalhar", diz, sentada num banco do Kennedy Center, a sala de espetáculos na ponta oposta do Mall àquela onde ficam as instalações da Voz da América. Franzina e embrulhada num casaco preto, Mayra explica que até agora os americanos culpam Trump pelo shutdown, mas "é uma questão de dias até virar" e começarem a culpar os democratas. Isso, diz a jornalista, "é o pior receio deles"..Nascida em Angola, formada na Universidade da Beira Baixa, Mayra trabalha desde 2013 na Voz da América. Ela é uma dos 800 mil funcionários federais que estão sem receber. O número, como a própria explica, parece pequeno num país com 330 milhões de habitantes. Mas "o shutdown afeta muitas mais pessoas", garante. As famílias dos funcionários, claro, mas também os bancos que ficam sem receber os impostos, as lojas das alas dos aeroportos que têm sido encerradas, só para dar alguns exemplos. É verdade que escolas e polícia continuam a funcionar, uma vez que dependem dos estados e não do orçamento federal. Mas dos ministérios à NASA, passando pelos funcionários dos aeroportos e pelos dos museus públicos, todos sofrem. "Até as carrinhas que vendem comida nas ruas não estão lá", diz Mayra a rir. E é verdade. Há algumas, sim, mas muito menos do que as que costumam ocupar cada esquina do Mall, a vender cachorros ou outros petiscos. Os museus ao longo da alameda também estão todos fechados, tal como o Zoo, uma vez que pertencem à Smithsonian, uma instituição fundada e administrada pelo governo federal. Em cada um deles, do Museu do Ar e do Espaço ao mais recente Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, há um sinal a dizer shutdown..Olhos postos em 2020.Com a segunda metade do mandato chega também a campanha para as próximas presidenciais. Sim, faltam quase dois anos, mas já todos começam a posicionar-se. "Eu acho que Trump não ganha em 2020", garante Mayra. Para a jornalista "as coisas estão a mudar em termos de onda". E dá como exemplo as intercalares, que viram ir às urnas uma camada que geralmente prefere ficar em casa - "os jovens foram votar porque perceberam que iam fazer a diferença"..Do lado democrata, o número de candidatos parece infindável. Até agora, a senadora do Massachusetts Elizabeth Warren é o nome mais forte a avançar formalmente para a candidatura. Mas fala-se em muitos mais - do ex-vice presidente Joe Biden ao congressista do Texas, Beto O"Rourke, que quase tirou a Ted Cruz o lugar no Senado nas intercalares..Mayra acredita que, quatro anos depois de Trump ter derrotado Hillary Clinton, a América vai estar preparada para pôr uma mulher na Casa Branca. "E Warren, apesar de ser de outra geração, tem uma mensagem na qual os progressistas se reveem", explica. Antes de acrescentar que para ela os latinos - a maior minoria nos EUA, contando para 17% da população - vão ter uma palavra a dizer. "Por isso, mulher e latina era o ideal.".A perspetiva diferente de Trump.De vestido justo e botas de verniz de salto alto, Natália Luís chama as atenções quando entra no lobby do Hotel Normandy, na zona das embaixadas. Empreiteira do setor da construção, Natália dirige com a irmã, Cidália, a empresa que os pais criaram quando emigraram para os EUA. Chegaram em 1979, tinha Natália 7 anos. Hoje, é como imigrante que cumpriu o processo de entrada na América e levou cinco anos a conseguir luz verde, mas também como cidadã orgulhosa do juramento que fez para se tornar americana, que vê os próximos dois anos. "Infelizmente não tenho muita confiança numa possível reconciliação entre democratas e republicanos", começa por dizer. O motivo? "Acredito que a liderança, desde as eleições intercalares de novembro, está a pensar nas próximas presidenciais". Para ela, a questão do financiamento do muro na fronteira com o México - estamos a falar de 5,6 mil milhões de dólares -, que está a deixar o país paralisado, não é uma questão económica, é uma questão política. "Acredito em fazer as coisas avançar. E o presidente Trump fez mexer algumas de forma positiva", explica. Apesar de ela e a família terem sido homenageados pelo presidente Barack Obama como exemplo do sonho americano, Natália acredita piamente que qualquer cidadão americano deve lealdade ao chefe do Estado. Seja ele qual for. E recusa entrar na onda de críticas a Trump só porque outros o fazem. "Gosto do facto de o presidente Trump ter uma perspetiva diferente, de entender os desafios diários de gerir um negócio", diz, sentada num sofá de veludo. E garante que o povo americano "devia saber apreciar esta força". Ela, como empresária, gostaria de que as regras que respeita fossem também respeitadas pelos outros. "Nós seguimos todos os protocolos, mas nem todos cumprem", garante, antes de lamentar que as pessoas que ela e a irmã não podem contratar para a M. Luis Construction acabam por ser contratados por outra empresa. "Está errado!" Tal como acha errado que famílias que seguem o processo para entrar nos EUA fiquem de fora porque outras entraram ilegalmente e ficaram. "É complicado", admite, e garante perceber que "algumas famílias vivem num tal estado de pobreza nos seus países que não têm a educação, a capacidade logística ou o dinheiro para se candidatarem de forma adequada". Para ela, "algo tem de ser feito", porque a imagem é de que a América já não é amiga da imigração. "Mas o país precisa da imigração mais do que nunca", diz. A questão é "quem queremos que venha para cá". Apesar de achar que Trump tem feito um esforço para cumprir as promessas que o levaram à Casa Branca, Natália admite que a reeleição pode não estar garantida. "Se a economia abrandar, ou se ele não conseguir fazer algumas das coisas fundamentais que prometeu, pode ser difícil ser reeleito." E adianta: "Ele pode até decidir não se recandidatar ." Para a empreiteira, é óbvio que Trump "não tem nada a perder", continua a ter os seus negócios se deixar a Casa Branca. Claro que tal só será uma opção se Trump chegar a 2020 no cargo. E com os democratas em maioria na Câmara a possibilidade de um processo de impeachment volta a pairar sobre Trump. Tudo devido à investigação do procurador especial Robert Mueller sobre a ligação entre a equipa do milionário e a ingerência russa nas presidenciais de 2016 para garantir a sua vitória. Para P.J. Crowley, ex-porta-voz do Departamento de Estado, se é verdade que "Trump enfrenta pela primeira vez uma oposição poderosa" e o impeachment "é muito mais político do que legal", não está claro "que o presidente tenha já cometido o tipo de crime que justifique a destituição".. Pode não ter cometido um crime, mas para Neil Cousins, Trump "não pode ser presidente. Ele só está a tirar tudo ao povo". Sentado numa tenda improvisada para se abrigar das temperaturas geladas, este homem de chapéu na cabeça que começou a protestar ali, em frente à Casa Branca, contra a guerra do Vietname está empenhado em mostrar aos políticos que a paz é o mais importante. O protesto antiarmas nucleares foi iniciado em 1981 por William Thomas, mas desde a sua morte vários voluntários vão-se revezando para evitar que as autoridades desmantelem a vigília. Dia e noite. Com Trump a viver na mansão ali em frente e a América em shutdown, só encontram mais razões para ali continuar.O DN viajou a convite do Festival Terras sem Sombra