Uma abominação que estranhamente parece não estar a incomodar por aí além

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Lê-se e tem-se dificuldade em acreditar. A notícia foi aparecendo recentemente em diversos media, portugueses e estrangeiros, e é coincidente nos relatos, com maior ou menor enfoque nos exemplos apresentados. Não dá para duvidar, por muito que apetecesse que fosse mais uma das fake news. Para fazer uma síntese rápida, socorro-me aqui de quatro artigos (por ordem cronológica): "China proíbe 23 milhões de compra de bilhetes de viagem como parte do sistema de crédito social" (The Guardian [online], 1 de março de 2019 às 13.48 GMT, por Lily Kuo, correspondente em Pequim), "A vida ao ritmo do algoritmo" (Margarida Mota, semanário Expresso, 1.º caderno, pág. 38), "Os créditos sociais chineses e os nossos polícias de costumes" (Henrique Monteiro, idem, pág. 39) e "Não é ficção: a China quer pontuar todos os comportamentos de cada cidadão" (de novo Margarida Mota, Expresso diário online, 9 de março de 2019 às 22.00).

O facto é este: o governo chinês implantou, e está a desenvolver e sofisticar, um sistema de controlo absoluto de praticamente todos os aspetos da vida de cada cidadão chinês (por enquanto com exceção de Hong Kong e Macau), para lhe traçar um perfil pormenorizado e estabelecer a sua pontuação num sistema batizado de "crédito social", por sua vez controlado pelo Partido Comunista Chinês, que castiga ou premeia, de diversas formas, o seu comportamento em função dos critérios estabelecidos pelo dito sistema. Os rápidos progressos das tecnologias de tratamento de big data, geolocalização e reconhecimento facial estenderão em breve esta aberração a todo o território.

Funciona assim: a cada adulto é atribuído um crédito de, digamos, 1000 pontos; o seu valor vai aumentando ou diminuindo conforme os "ganhos" por "bom comportamento" (desde cuidar da sogra acamada após a morte do marido até andar ou correr x milhares de passos diariamente para manter a forma, oferecer uma televisão a um centro cívico ou ter um filho a fazer serviço militar no Tibete) ou as "perdas" por "comportamento incorreto" (desde cuspir na rua até atravessá-la fora da passadeira, passar muitas horas no computador sem ser a trabalhar, ter amigos "errados" nas redes sociais, demorar demasiado tempo a pagar as dívidas, viajar sem bilhete, passear um cão sem trela, fumar num recinto fechado). O valor atingido, constantemente analisado e julgado pelo sistema, dará origem, conforme o caso, a "castigos" (desde proibição de viajar - já aconteceu a 5,5 milhões para deslocações de comboio e a 17,5 milhões para deslocações de avião - até à proibição de comprar seguros ou imóveis) ou a "prémios" (desde descontos em resorts e alugueres de automóveis à obtenção rápida de vistos e licenças). E os infratores graves serão rapidamente apanhados graças ao reconhecimento facial.

Dispenso-me de classificar esta monstruosidade, cujas implicações são um susto - e um alerta para o que pode vir aí dentro de pouco tempo em qualquer lado deste louco mundo. Nem Orwell foi tão longe.

O que me põe os cabelos em pé é a passividade do Ocidente (ainda) livre face a tamanha perversão. Que não se tenha (ainda) gerado à escala mundial um movimento de indignação e revolta a exigir o fim desta abominação.

Já era chocante a indiferença com que se foi fazendo toda a espécie de negócios com a China como se fosse um país decente que respeita os direitos humanos, e não uma ditadura pura e dura, de partido único e sem contemplações de qualquer espécie para com os dissidentes. Mas isto ultrapassa tudo, e a inação tudo legitima.

Não é preciso declarar guerra à China. Basta excluí-la imediatamente da Organização Mundial do Comércio, e consequentemente passar a taxar todos os seus produtos exportados, até que cesse este horror e se pergunte - em condições de inequívoca liberdade, porventura sob supervisão internacional - aos cidadãos chineses se eles o aceitam e aprovam. Para já podia-se começar pelos que residem fora do continente chinês e estejam ao abrigo das garras deste polvo tão inacreditavelmente hediondo.

É claro que é facílimo dirigir um país assim, sem nenhum "pio" contra, e obter retumbantes resultados económicos à custa desta autêntica escravatura. Mas - além da questão primordial dos direitos humanos assim esmagados - trata-se de uma concorrência desleal, distorcida e totalmente desequilibrada que rebentará a curto prazo com as economias dos países democráticos.

Que mais falta para que os governos destes, concertadamente, reajam?

Maestro, compositor e professor aposentado

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