Um testamento a cumprir
Quando alguém que admiramos parte, é importante recordar a sua memória e tudo quanto nos deixou, em especial no exemplo e nas obras realizadas. Mas há algo mais que se nos pede. No caso de Jorge Sampaio, pudemos contar, até aos últimos dias da sua vida, com a determinação e a sua atenção especial a todos os sinais de desumanidade e riscos de injustiça. E se ouvimos, nestes dias, muitas palavras justas de elogio sobre o seu percurso e sobre o tanto que fez, a verdade é que temos de ter presente o último apelo que nos deixou, que tem de ser ouvido e cumprido. Combatente de sempre dos direitos humanos, não só como eminente causídico e jurisconsulto, mas sobretudo como generoso e determinado homem de causas, como a liberdade e a justiça, que prosseguiu sem qualquer quebra na determinação ou no entusiasmo, mesmo quando as forças físicas lhe iam faltando, foi um construtor de soluções concretas na defesa dos valores humanitários, designadamente no caso dos refugiados.
No último texto que escreveu, há poucos dias (Público, 26.8.2021), pôs a tónica na trágica crise do Afeganistão, e lembrou a necessidade de estender a experiência dos últimos sete anos de integração de estudantes sírios, recordando que a solidariedade não é facultativa, mas um dever que resulta do artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos - ""Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade". Assim, não poderemos "responder às crises humanitárias ao sabor das modas ou ignorá-las por razões de cansaço, enfado ou indiferença".
As situações da Síria, Iémen, Haiti, Tigray (Etiópia), Sudão e Sudão do Sul, Somália, Cabo Delgado, e agora do Afeganistão, obrigam a respostas que visem as vítimas das tragédias em curso, mulheres, homens, jovens e crianças. Daí a necessidade de intervir com respeito pelos princípios da humanidade, neutralidade, independência e imparcialidade. Desde sempre esta exigência esteve presente no percurso de Jorge Sampaio. Estamos confrontados com o drama sentido pelas jovens afegãs, cuja dignidade e cujo futuro estão em causa. Daí a importância deste apelo concreto que deixou a todos os parceiros da Plataforma Global para os Estudantes Sírios criada em 2013: entidades oficiais, instituições do ensino superior, centros de estudos e investigação, empresas, fundações, sociedade civil, para que disponibilizem apoios, oportunidades académicas e profissionais, estágios e vagas para as jovens afegãs. Falamos do programa de bolsas de estudo para estudantes sírios, visando dar resposta à emergência académica que o conflito na Síria criou, deixando milhares de jovens sem acesso à educação. A Plataforma tem alargado a sua esfera de ação, trabalhando na criação do Mecanismo de Resposta Rápida para o Ensino Superior nas Emergências, que deverá considerar um programa de bolsas de estudo e de oportunidades académicas para as jovens estudantes de origem afegã. Eis a urgência.
Os resultados da experiência com os estudantes sírios mostraram benefícios para os alunos, mas também para as comunidades de acolhimento, como fatores de renovação e reforço das suas capacidades criativas e produtivas. Importa, desde modo, alargar essa experiência às jovens afegãs, além dos estudantes sírios, libaneses e outros. A carta que uma jovem adolescente afegã enviou a Angelina Jolie e esta partilhou no Instagram diz tudo sobre a premência e atualidade do apelo de Jorge Sampaio. "Um dia, vieram a nossa casa e ficámos com tanto medo que pensei como seria depois daquele dia a hora de ir para a escola nesta situação".
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian