Um surpreendente 'Macbeth' no feminino

Publicado a
Atualizado a

Não se resumiria a capricho a nova vocação teatral de Marília Gabriela (n. 1948)? Jornalista famosa, o público português já a conhecia, senão do programa "Marília Gabriela Entrevista", que em tempos passou no GNT, pelo menos da novela da Globo Senhora do Destino, retransmitida pela SIC.

O seu desempenho em Senhora Macbeth, espectáculo que termina hoje uma curta série de três apresentações em Lisboa, terá desiludido alguns - os contidos aplausos da estreia pareceram-me reflectir uma certa decepção perplexa -, embora a confirmassem, a meu ver, como excepcional intérprete, fora, portanto, da atracção fácil que os heróis televisivos brasileiros suscitam entre nós.

A peça da romancista e dramaturga argentina Griselda Gambaro (n. 1928) é, aliás, notável. Baseando-se na trama de Macbeth, de Shakespeare, La Señora Macbeth (2004) segue o princípio da tragédia clássica que ditava a substituição, em cena, dos acontecimentos sanguinários pelo seu relato. Assiste-se somente, pois, ao eco dos acontecimentos, num diálogo entre uma mulher de alta sociedade (Lady Macbeth) e três criadas (decalcadas das feiticeiras que, em Shakespeare, predizem a ascensão e queda do ambicioso Macbeth).

Esta centralidade tem duas consequências interessantes. Por um lado, considerando a classe social da protagonista, realça a impotência feminina face à posse masculina do poder. Marília Gabriela apanha bem este tom diletante de uma tragicomédia doméstica. A exuberância dos sucessivos figurinos, a ligeireza volúvel dos seus gestos, o ritmo nervoso e hesitante que atravessa a sua coxa argumentação com as criadas e a ingenuidade cabotina com que troca as voltas ao crime - escudando-se sempre na caridadezinha que lhe suscitam os desamparados - desenham a emotividade fácil e superficial de quem se alheia da culpa.

Por outro lado, apontando já para a emancipação, enfatiza a sua obsessão de vencer essa exclusividade (a actriz explora a sua extensíssima tessitura vocal para "dobrar" a imaginada voz masculina, erotizando a possibilidade de a igualar ou, pelo menos, de a dominar sexualmente).

Os co-encenadores Antônio Abujamra e Hugo Rodas encerraram esta Senhora Macbeth num espaço vazio, que expressa a sua debilidade ambigua, reiteradamente humilhada pela verdade - mais existencial e ética, que trágica - com que as criadas-feiticeiras a confrontam (razão última da loucura patética que a conduz a uma morte sem glória).|

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt