Um silêncio ensurdecedor

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Como sucedeu com muitos outros portugueses, tive encontros e desencontros políticos com Mário Soares. Esperei-o em Santa Apolónia, com o meu filho mais velho às costas, quando regressou do exílio em abril de 1974. Foi com ele enquanto líder que me inscrevi no PS, participei nas grandes manifestações em 1975 contra a deriva totalitária, com Mário Soares na liderança nas lutas pela liberdade e pela democracia.

Afastei-me dele quando achei que Portugal precisava de um choque liberal na economia, para a libertar dos excessos de 1975. Por isso, o afastamento foi meu.

Em 1985-86 dirigi a campanha presidencial de Freitas do Amaral, foi uma campanha dura contra a candidatura de Mário Soares. Depois, saí da política.

Porque defendi mas também combati Mário Soares, estou à vontade para reconhecer que ele foi o político que marcou a história da consolidação do regime democrático em que vivemos. Destaco três características da sua personalidade: a primeira e porventura a que mais o distingue entre os políticos do seu tempo, a coragem, física e intelectual, com que enfrentou os adversários da liberdade e da democracia; era um homem sem medo, nenhuma ameaça, nenhuma contrariedade, nenhuma vantagem pessoal diminuiu o seu combate pelos ideais em que acreditava. Depois, a sua intuição política, que lhe permitiu prever, antes de quase todos, para onde o mundo caminhava; foi assim que intuiu a onda democrática que levou à queda dos últimos regimes autoritários na Europa, a urgência da nossa entrada na CEE, a queda do Muro de Berlim e agora, na fase final da sua vida, as derivas do capitalismo, das receitas austeritárias e dos seus efeitos na degradação das democracias. Destaco finalmente o seu profundo sentido de justiça, quer na distribuição da riqueza quer no respeito pelos direitos humanos.

Já depois do 25 de Abril, quando começaram as primeiras prisões de motivação política, exatamente a 13 de dezembro de 1974, Mário Soares foi o único membro do governo que em Conselho de Ministros exprimiu, com a sua veemência habitual, o repúdio perante novos métodos de ofensa aos princípios do Estado de direito. E recordo que, quando defendi Leonor Beleza perante um atropelo inadmissível do sistema judicial, Mário Soares rompeu com o habitual cinismo da nossa elite política quando se trata da justiça, para denunciar no prefácio ao livro que então publiquei "a enormidade da acusação movida a Leonor Beleza".

Com a morte de Mário Soares silencia-se uma voz ímpar na defesa da Liberdade, da Democracia e da Justiça.

É um silêncio ensurdecedor.

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