Um Shakespeare falhado no Teatro Nacional

Publicado a
Atualizado a

Jogo equívoco de Nuno Cardoso leva Shakespeare ao futebol

Colaborador permanente, desde há alguns anos, do Teatro São João - foi, até Dezembro passado, director artístico do Teatro Carlos Alberto, sala associada ao nacional do Porto - Nuno Cardoso encena agora Ricardo II, de William Shakespeare, a convite do nacional de Lisboa. A metáfora do jogo, a que aqui recorre, parecia adequada a uma peça que, centrando-se na deposição do rei inglês Ricardo II (1367-1400) e na sua substituição por Henrique de Bolingbroke, se organiza numa sequência de ferozes ajustes de contas, que revela com agudeza e perspicácia as transformações que o exercício - ou a ambição - do poder provoca nas personagens.

A cenografia fixa de F. Ribeiro - um chão relvado que, ao fundo, se eleva numa série de colinas, e a enorme torre de iluminação que sobre ele pende - sinaliza, numa ambiguidade feliz, tanto o campo de jogos onde se enfrentam as "equipas" adversárias, como o objecto da disputa, ou seja, a Inglaterra sempre verde (além de resolver bem os sucessivos espaços exigidos pela intriga).

Ora, esta poderosa imagem visual - tão ajustada à virilidade excessiva e brutal dos confrontos entre estes nobres - é estreitada pelos figurinos "futebolísticos" da dupla Storytailors, duma ironia exuberantemente pop, tão desnecessária quanto óbvia. Codifica-se neste mesmo sentido, aliás, o movimento dos actores, que mais parecem rapazolas num recreio escolar - desafiando-se aos encontrões ou correndo em círculos, passando a coroa como testemunho -, esquecidos, porém, do dilatado xadrez retórico que, paulatinamente, deveria transfigurar as personagens.

A grandeza ética e emocional desta evolução é hipotecada, também, pela insistência em registos exteriorizados, secos e baços, quando não extemporaneamente histriónicos (a destemperada e libidinosa duquesa de Gloucester de Flávia Gusmão, por exemplo) ou descontraídos em excesso (João Ricardo, intérprete de Ricardo, passa ligeiro pelo assombroso monólogo que precede o assassínio do protagonista, onde um maneirista desconcerto do mundo expõe a inconstância do poder com singular crueza irónica).

A previsibilidade dos separadores sonoros (uma charanga inexpressiva), o desajuste dalgumas imagens disruptivas (os corpos tornados objectos que atravancam a rainha, na lancinante cena do jardim) e o geral desacerto das interpretações empalidecem esta actualíssima tragédia de Shakespeare, em que o erro humano arde num paradoxo de acção irreflectida e lirismo magoado.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt