Um serão musical tal como se faria... há 600 anos

Agrupamento Tasto Solo, dirigido por Guillermo Pérez, apresenta-se esta noite (21.30) no Palácio da Vila, em Sintra, no encerramento do ciclo de concertos 'Reencontros', que decorreu ao longo do corrente mês
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O primeiro ciclo de concertos "Reencontros", que se vem realizando desde dia 5 no Palácio da Vila, tem hoje o seu capítulo final com um concerto pelo reputado agrupamento hispano-francês Tasto Solo, de que é diretor o instrumentista de tecla catalão Guillermo Pérez. O programa é todo ele dedicado à música do século XV, com especial ênfase nas canções polifónicas profanas e híbridas (sacras de proveniência profana) de Gilles Binchois (c. 1400-1460) e Guillaume Dufay (1397-1474), tal como constam do importante Códice de Buxheim.

Ocasião, esta, também para conhecermos instrumentos (muito) pouco habituais, como o clavicímbalo de martelos, a harpa gótica, a viela de arco e o organetto - este último, a especialidade de Guillermo Pérez.

Falámos com Pérez, que faz a sua primeira visita ao nosso país: "comecei a tocar organetto no ano 2000 e aprendi sozinho. Antes, tocava flauta travessa e antes ainda, aprendi piano". Quinze anos depois, não há ainda cursos de organetto: "O máximo que se encontra são cursos de instrumentos de tecla da Idade Média, em Basileia e Genebra", diz.

Mas o que é o organetto? Uma caixa sobre a qual repousa um teclado rudimentar e um conjunto de tubos de diferentes alturas e grossuras, tendo atrás um fole acionado por uma das mãos. Pelo que o organetto se toca sempre só com uma mão. Apesar de parecer pequeno, frágil, "pesa pelo menos dez quilos e é tocado sobre as pernas", sendo que, tal como o acordeão, frequentemente se usa "uma cintura, mais uma fita à volta do pescoço e das espáduas", mormente quando é tocado na rua em itinerância. Dispositivos que permitem "o contacto directo, corporal entre instrumento e músico", indispensável para "controlar os parâmetros e variáveis de produção do som" permitidos pela manipulação do fole: "pode-se controlar a pressão, pelo que o organetto tem uma respiração modulável, como o arco do violino, que permite uma variada expressividade". Uma "necessidade de proximidade com o corpo" que faz Guillermo aproximá-lo do violino.

O organetto foi parte ativa da vida musical "entre o fim do século XII e o início do século XVI", diz-nos. Desaparecendo depois por completo. Meio milénio de ausência deixou "apenas alguns fragmentos de alguns exemplares tardios, mas muito insificientes" para se poder reconstruir um instrumento. Pelo que a alternativa passa "pela iconografia muito numerosa que existe", reveladora de um instrumento muito popular: "ele era usado, quer no repertório sacro, quer no profano; naquele, dentro ou fora das igrejas - por exemplo, em procissões [é mesmo possível que o uso em procissões esteja na origem do aparecimento do próprio instrumento]; e neste, muito associado também à dança". E passa, decisivamente, pelos tratados da época, "sobretudo os de Arnaut de Zwolle, de 1440 e de Paulirinus de Praga, de cerca de 1460" - sendo que Leonardo também os desenhou. Nestes tomos já com um grau considerável de cientificidade, "há numerosas imagens e diagramas realizados com bastante exactidão, que nos permitem perceber a mecânica do instrumento e os materiais empregues na sua construção". Mas Guillermo alerta-nos: "é preciso perceber que não existe o conceito de cópia fidedigna para o organetto. Ele variava muito, consoante as épocas e as regiões, tal como variavam tamanhos e materiais". Avança como razões para o súbito desaparecimento, "por um lado, o século XVI ser uma época de transformações sociais e tecnológicas importantes: os instrumentos de tecla (cravos, clavicórdios, virginais, órgão positivo) sofrem avanços importantes e privilegia-se instrumentos maiores, capazes de fazer outros tipos de música, de acordo também com as mudanças de gosto. No caso das teclas, como poderia um organetto competir com instrumentos com extensão de várias oitavas, capazes de polifonia e tocados com as duas mãos?..."

Mas enquanto durou, não faltou ao organetto o que tocar: "repertório vocal, adaptações de obras para outros instrumentos, acompanhando a voz/vozes, em ensemble com outros instrumentos..." E para descobrir esses repertórios, uma das melhores fontes é o Códice de Buxheim, donde procede a maior parte do repertório de hoje: "sim, na verdade é mesmo a fonte mais importante em termos da variedade de repertório que apresenta. Além disso, a notação está em tablatura e as partes apresentam-se juntas. Depois, contém ainda uma parte de pendor didáctico, que nos permite perceber a técnica dos instrumentistas da altura nos vários instrumentos de tecla e nos fala, inclusivé, das vidas de vários organistas e outros teclistas".

Muitos "organettistas" eram ao mesmo tempo cantores, mas "não, eu não canto e toco ao mesmo tempo", confessa Guillermo, rindo. "Em casa, ainda vá, mas não tenho voz para o fazer a nível profissional! Mas já tive alunos que o faziam", acrescenta.

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