Um rumor insistente
Porque escreveu Manuel Teixeira Gomes sobre a «deliciosa» nudez e a «rija musculatura» dos adolescentes? Sobre a «exuberante beleza» de um amigo e a «lânguida expressão amorosa» de um prostituto? Sobre um marujo que o «provoca e acaricia» com o olhar?
Estas são perguntas para as quais a comunidade académica não tem resposta. Até porque cruzam a vida pessoal e literária deste empresário e diplomata, escritor e viajante que foi Teixeira Gomes (1860-1941), Presidente da República em 1923, que viveu com uma mulher e teve duas filhas. As biografias falam de um homem brilhante, cosmopolita e de pensamento avançado. E falam, normalmente em letras mais pequenas, da sua alegada homossexualidade. A hipótese chegou a circular por Lisboa nos anos 1920, sob a forma de boato, e há hoje quem diga que se trata apenas de uma lenda.
O escritor Urbano Tavares Rodrigues, professor jubilado da Faculdade de Letras de Lisboa e autor da tese de doutoramento O Discurso do Desejo (1982), sobre a literatura de Teixeira Gomes, é dos que entende que ele «nunca foi um homossexual». E explica porquê: «Tinha pulsões, mas não fez um investimento no desejo homossexual. Como escrevi na minha tese, há nele uma pulsão homossexual integrada, que faz parte da sua personalidade heterossexual, mas não é dominante.»
O historiador Vasco Pulido Valente discorda. «Por pura inferência, sou levado a dizer que Teixeira Gomes era pedófilo, homo e heterossexual. Quem ler a obra e conhecer a biografia concluirá o mesmo», defende.
O bisneto de Teixeira Gomes, Miguel Callapez, de 43 anos, reconhece «o direito a questionar» a sexualidade do escritor que foi também seu bisavô, mas recusa-se a entrar em polémicas. «Ser homossexual não o diminuiria em nada, mas não sei dizer se era ou se não era. Não acho o tema interessante. A partir da sua obra não se pode extrair nenhuma conclusão.»
Nos contos e romances de Teixeira Gomes as mulheres são uma constante. Descreve ao pormenor o corpo delas, refere-se muitas vezes aos seios e aos cabelos, inunda a prosa com erotismo heterossexual. Em simultâneo, há também várias referências aos corpos masculinos. O que sempre deu azo a especulações numa temática que os cânones vigentes tendem a evitar, como defende Fernando Cascais, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigador da temática LGBT (lésbica, gay, bissexual e transgénero). «Há o medo de que, no aspecto homossexual, a obra reflicta e exprima a própria vida, o que não só diminuiria a obra como poria a nu comportamentos tidos por degradantes».
Vida real
Homem «refinado, mundano, literato e cosmopolita», Manuel Teixeira Gomes pertencia à alta burguesia, mas cultivava um estar próximo do povo no que dizia respeito ao «desprezo pelos costumes, hierarquias e pudores tradicionais», nota o historiador Rui Ramos no volume 6 da História de Portugal dirigida por José Mattoso. Nasceu a 27 de Maio de 1860 em Vila Nova de Portimão, filho de Maria da Glória Teixeira e José Libânio Gomes – um riquíssimo comerciante de frutos secos. Tinha três irmãos.
Aos 10 anos, foi estudar para o seminário de Coimbra, experiência que o converteu em ateu militante. A vida universitária que se seguiu foi desastrosa. Tenta Medicina, mas a boémia acabou por ser mais forte do que ele. Às longas noitadas de whisky, charutos e prostitutas juntava as tertúlias com a intelectualidade lisboeta e portuense: Fialho de Almeida, António Nobre, Sampaio Bruno, Basílio Teles, Soares dos Reis. Os estudos ficaram por concluir.
Aproveitando os privilégios de classe, Teixeira Gomes viajou longamente pela Europa e pelo Norte de África. Alargou os horizontes, preparou o futuro como delegado comercial dos negócios familiares e iniciou uma criteriosa colecção de pintura e objectos de decoração – que pertence hoje na quase totalidade ao Museu do Chiado, em Lisboa. Tornou-se fluente em espanhol, francês e inglês. Um autodidacta estrangeirado, o verdadeiro boémio fin de siècle.
Por volta dos 25 anos regressou a Portimão para trabalhar com o pai e passou a viver com Belmira das Neves, uma adolescente de origem modesta. Tiveram duas filhas e nunca se casaram, porque, segundo a interpretação consensual, um homem da classe dele nunca poderia desposar uma mulher do povo. O facto de Teixeira Gomes ser casado e ter filhas, tem sido apontado como explicação para negar a sua homossexualidade.
«Até mais ou menos aos anos sessenta do século XX, as pessoas a quem hoje chamamos homossexuais não excluíam a possibilidade de casar e depois tinham “aquela coisa” fora do casamento com pessoas do mesmo sexo», contrapõe o professor António Fernando Cascais. «Para encontrarmos em Portugal personalidades com um modo de vida e uma legitimação intelectual da homossexualidade seria preciso chegarmos aos surrealistas, dos anos quarenta. É o caso de Mário Cesariny. Ele é o primeiro que o diz, com elaboração intelectual.» Antes disso, só António Botto (1897-1959), que acabou em desgraça por se ter assumido. Era casado.
Teixeira Gomes escreveu um curto ensaio para a edição de 1941 de As Canções de António Botto, livro de poesia homoerótica que depois foi mandado apreender pelo Governo Civil de Lisboa em 1923 e que tinha originalmente sido publicado em 1922 pela editora Olisipo, de Fernando Pessoa. Nesse ensaio, Teixeira Gomes sai em defesa da homossexualidade de Botto, de forma velada: «Uma das formas singulares do poeta António Botto consiste em exprimir alguns sentimentos requintados, despindo-os do convencionalismo burguês ou mesmo de toda a classe de convencionalismo.»
Político
Mas voltemos ao enredo biográfico. Quando a monarquia cai, em 1910, Teixeira Gomes é um republicado convicto e de excelentes relações com os homens do poder. O governo provisório de Teófilo Braga convida-o para ministro de Portugal em Londres. Aí vive durante sete anos, nas altas esferas da diplomacia, tornando-se até amigo do rei Jorge V. A seguir, o primeiro-ministro José Relvas nomeia-o para Madrid, experiência que dura apenas alguns meses. Volta a Londres em 1919 como representante de Portugal na Sociedade das Nações (antecessora da ONU).
Em Agosto de 1923, Teixeira Gomes foi eleito Presidente da República, por força e sugestão de Afonso Costa, figura central da Primeira República. O sufrágio directo não existia, era a Câmara de Deputados e o Senado que escolhiam o inquilino de Belém. «Não vem num momento de tranquilidade, de boa ordem, paz e serenidade nos espíritos e nas ruas», escreve o diário A Capital, dias antes da tomada de posse, que se dá a 5 de Outubro. «Espinhoso é o cargo», vaticina Teixeira Gomes no discurso de investidura.
Nessa altura Teixeira Gomes tinha 63 anos e já escrevera toda a sorte de impudências que a moral da época não perdoara. Os livros Inventário de Junho (1899), Cartas sem Moral Nenhuma (1903), Agosto Azul (1904) e Gente Singular (1909) são os mais controversos. «É um provocador, mas com grande capacidade literária. O eros é dominante na obra», sintetiza Urbano.
David Mourão-Ferreira, no ensaio já referido, fala em «arte voluptuosa» e deixa cair uma insinuação: «Por curiosa inclinação do seu espírito, se não também do seu corpo, Teixeira Gomes revela impressionantes afinidades com o pensamento grego dos séculos IV e II antes de Cristo». Miguel Callapez, o bisneto, relativiza: «Era um esteta, seria castrador que olhasse a beleza feminina e a masculina e não as pudesse descrever da mesma forma.»
Os adversários políticos de Teixeira Gomes são os primeiros a bradar perante as descrições que ele fazia de faces imberbes e músculos cinzelados. Escreve o historiador Rui Ramos que «na política republicana a exibição de bons costumes era de regra e a melhor maneira de ferir um adversário era sugerir ou dizer que o outro não era tão casto e puro como um bom republicano devia ser».
Não perde por esperar. No Congresso do Partido Nacionalista de Março de 1925, «Cunha Leal [ex-ministro das Finanças] não hesitou em acusar o Presidente de ter escrito Cartas sem Moral Nenhuma e em repetidas ocasiões referia a admiração que ao Presidente era atribuída por corpos nus de rapazes.» Segundo Rui Ramos, esse boato andava nas bocas de «muita gente», o que obrigou o visado a vir a público «com um desmentido formal».
Urbano Tavares Rodrigues entende que, neste caso, Teixeira Gomes foi vítima de «verrina política». E adianta que «não há nas cartas dele para os amigos quaisquer referências a práticas homossexuais, pelo contrário, refere-se aos rumores que circulavam e desmente-os sempre». Por que motivo, então, teria escrito tantas vezes sobre a sensualidade masculina? «Seguia um certo modismo da literatura francesa da época. Não diria que imitasse, mas aceitava sugestões da obra de André Gide, e de outros autores, e sofreu influências do simbolismo decadentista e do naturalismo», explica Urbano.
António Fernando Cascais sustenta que «a forma como tem vindo a interpretar-se a obra de Teixeira Gomes é baseada em grelhas de inteligibilidade literária e social próprias do século XIX. A identidade homossexual no fim do século XIX é considerada uma doença, não um estilo de vida. Os homossexuais naquela época são os degenerados que engatam na rua, que não podem progredir socialmente, que são alcoólicos, que vão parar ao hospital psiquiátrico. Teixeira Gomes não faz outra coisa que não seja defender-se dessa condição imposta pela medicina. Ele é um intelectual, não pode ser um degenerado, o que faz e o que escreve não pode ter nada que ver com homossexualidade».
Mulher adolescente
Quanto às alegações de pedofilia, que também sobre ele pesaram, baseiam-se sobretudo no facto de a mulher de Teixeira Gomes ter 13 ou 14 anos quando se juntaram. Algumas passagens dos seus textos ajudam a acentuar a questão. Fala de mulher «miudinha e perfeita», «faces imberbes», «corpo insexuado» e «corações vilmente desflorados». Urbano contextualiza: «Ele tinha um fraco pelas adolescentes, hoje poderíamos falar em pedofilia, mas a moral da época entendia que uma rapariga de 13 anos era uma mulher feita.»
Pulido Valente coincide: «Um adulto do sexo masculino que fosse pedófilo de rapazes ou raparigas não era malvisto nas sociedades mediterrânicas do século XIX e inícios do XX. Veja-se o caso do duque de Palmela, que se casou com D. Eugénia Teles da Gama, descendente de Vasco da Gama, quando ela tinha apenas 13 ou 14 anos.»
Ao escrever ao amigo António Patrício, a 8 de Novembro de 1926, Teixeira Gomes disserta sobre a atracção sexual por crianças. Defende que muitas vezes são as vítimas de violação que têm culpa de serem violadas. A carta é publicada em 1937, na compilação Miscelânea [ver excertos nestas páginas]. Mais tarde, em 1942, no livro O Exilado de Bougie, do jornalista Norberto Lopes, é atribuída ao antigo chefe de Estado a seguinte frase: «Essa calúnia ignóbil, que correu os cafés de Lisboa a meu respeito… Pederasta, eu, que toda a minha vida gostei de mulheres!» Pulido Valente levanta uma hipótese quanto a esta última frase: «Isso pode ser o Teixeira Gomes a tratar já da sua imagem para a História, na certeza de que a pederastia passara a ser malvista. A partir dos anos 1940, por via do fascismo italiano e do nazismo, Portugal adere à imagem do homem fardado e viril, autoritário e austero, o que evidentemente já não deixava espaço para práticas pedófilas.»
No fim da vida, o criador de Cartas sem Moral Nenhuma exilou-se voluntariamente no Norte de África. O curto mandato presidencial terminara em Dezembro de 1925 com a sua resignação. «Artista por índole, natureza de uma extrema sensibilidade, vivendo há muitos anos num meio afastado, cheio de requintes e hábitos de civilização muito diversos dos nossos, era natural que se sentisse em profundo desânimo e desalento», escreve o Diário de Notícias a 9 de Dezembro de 1925.
Diz a lenda que o presidente demissionário apanha o primeiro barco que lhe aparece no Tejo, um vapor holandês de nome Zeus. Faz escala em Setúbal e em Tânger, atraca em Oram. Durante seis anos deambula de cidade em cidade, até que em 1931 vem a assentar em Bougie (actual Bejaia), na Argélia. Quarto número 13 do Hotel de L’Étoile. «Completamente isolado, sem relações, sem visitas, sem amigos próximos, fazendo uma vida de asceta», relata o jornalista Norberto Lopes.
«A veneranda figura que se refugiou em Bougie (e não, por exemplo, em Nice) tinha razões de um peso particular», escreveu Pulido Valente em 2006 no blogue O Espectro. «O Norte de África, como Gide amorosamente descreveu, era o paraíso dos pedófilos», e lugar de refúgio para os homossexuais europeus.
Dois anos depois de sair de Portugal, Teixeira Gomes enviou uma carta ao médico e jornalista José Pontes, de 14 de Fevereiro de 1927. «Eu, por meu lado, regressei à vagabundagem internacional, que fez as delícias do meu passado, e à qual me convencera de que nunca mais voltaria. Há ano e meses que nela ando (ninguém já mos tira) e oxalá os que ainda tenho para viver (se alguns me restam) decorressem de igual modo.»
A 18 de Outubro de 1941, Teixeira Gomes morreu em Bougie. Sozinho, deprimido e quase cego. Os restos mortais só serão trasladados para Portugal em 1950, numa cerimónia em que esteve presente um único representante do Estado: o ministro do Interior Trigo de Negreiros. NS
‘Voyeurismo’, diz
a psicóloga Gabriela Moita
Perante os excertos eróticos da obra de Manuel Teixeira Gomes, a psicóloga Gabriela Moita afirma que «nada permite concluir sobre a orientação sexual» do autor/narrador – seja ela hetero, homo ou bissexual. Doutorada pela Universidade do Porto em 2001, com a tese Discursos sobre a Homossexualidade no Contexto Clínico, Gabriela Moita acrescenta, no entanto, que Teixeira Gomes é um voyeurista corajoso: «Se eu não tiver em conta nem o género do narrador nem o género do corpo exaltado, o que digo é que o corpo é observado e exaltado pelo narrador com sensualidade e erotismo. Tendo em conta o género de ambos, e a norma heterossexista, diria que é interessante e corajoso que um homem, e sobretudo na época a que nos referimos, seja capaz de criar um narrador que observa e descreve a sensualidade e o erotismo de um corpo. Diferente seria dizer que é com sexualidade e erotismo que ele observa os corpos. Isso já seria uma interpretação.»