Um retrato íntimo de Liberace, por Steven Soderbergh
Numa espécie de insólita "tradição" do Festival de Cannes, a segunda-feira a seguir ao primeiro fim de semana do certame terá sido o dia menos interessante da seleção oficial. Por um lado, com a apresentação de Wara No Tate, do japonês Takeshi Miike, um daqueles policiais cuja "cópia" dos modelos americanos soa a falso desde as primeiras imagens. Por outro lado, com a passagem de dois títulos ligados a Itália: Un Chateau en Italie, de Valeria Bruni Tedeschi, insistindo na abordagem melodramática do espaço familiar, num jogo de variações em que apenas o trabalho dos atores (com destaque para a própria realizadora e Fillipo Timi) continua a ser muito rico; e La Grande Bellezza, de Paolo Sorrentino, retrato operático da aristocracia decadente de Roma, num tom de surpreendente exuberância de produção, com alguns bons intérpretes, mesmo se as qualidades do modelo inspirador (o cinema de Fellini) permanecem distantes.
Entretanto, chegou um dos grandes filmes deste festival: Behind the Candelabra, de Steven Soderbergh. Desde logo, porque a interpretação de Michael Douglas na personagem do cantor e entertainer Liberace (1919-1987) é um prodígio de talento e versatilidade, não sendo arriscado considerar que ele se perfila como o vencedor "obrigatório" do prémio de Melhor Ator; depois, porque a muito comentada recusa dos principais estúdios de Hollywood em financiar um projeto que seria "demasiado gay" (acabou por ser um canal de televisão por cabo, a HBO, a dar luz verde a Soderbergh) emprestou ao filme uma aura de polémica centrada nas opções "infantis" (super-heróis, animação, etc.) que hoje em dia dominam esses estúdios. Em boa verdade, na sua conferência de imprensa, Soderbergh contribuiu para uma certa desdramatização do assunto, preferindo valorizar o facto de ter podido fazer, em televisão, exatamente o mesmo filme que faria num contexto de produção cinematográfica (aliás, pelo menos em alguns países europeus, Behind the Candelabra deverá ter lançamento nas salas).
O próprio filme, naturalmente, favorece essa desdramatização, quanto mais não seja porque a abordagem franca e detalhada da homossexualidade de Liberace nunca cede a qualquer facilidade "panfletária": Behind the Candelabra é, antes de mais, um filme sobre uma genuína e fascinante personalidade do entertainment; depois, vai-se desenvolvendo como o retrato íntimo de uma convulsiva história de amor e solidão, partilhada por Liberace e o seu companheiro Scott Thorson (magnífica composição de Matt Damon). Essa história torna-se tanto mais intensa quanto a morte de Liberace, vitimado pela sida, ocorreu num momento em que a sociedade americana começava a ter consciência da dimensão trágica da doença.