Um "Requiem" com sonoridades rock na Casa da Música

Em tempo de concertos de música sacra, Ano Rússia da Casa da Música dá a ouvir obra icónica de Alfred Schnittke. Mas as propostas multiplicam-se de norte a sul do país
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Numa época em que a música religiosa era oficialmente proibida na União Soviética, Alfred Schnittke (1934-1998) ousou escrever um Requiem, mas camuflou-o como "música para o drama Don Carlos de Schiller". Agora, 41 anos passados, ele será escutado na Casa da Música (hoje, Sala Suggia, 19.30), pela junção de Remix Ensemble e Coro Casa da Música, mais quatro solistas vocais, dirigidos pelo excelente maestro estónio Olari Elts (n. 1971). O programa contempla ainda obras de dois compatriotas de Elts: o Salve Regina de Erkki Sven-Tüur (n. 1959) e Be lost in the call, de Toivo Tulev (n. 1958), ambas deste século.

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Schnittke, um dos mais relevantes compositores russos da geração posterior a Shostakovitch, ficou conhecido pelo poliestilismo e gosto da citação, que moldou até fazer imagem de marca pessoal. Este Requiem, terminado aliás no ano em que morreu Shostakovitch, é dos primórdios dessa sua via própria e apresenta uma linguagem tonal, com influência da tradição musical ortodoxa russa. Ele tem ainda uma outra faceta típica: o gosto de brincar com tradições, aqui traduzido na desconstrução da gravidade e temor/terror associados ao ofício de exéquias, num misto de desafio e provocação. Isso fica patente logo na reduzida instrumentação da obra, que inclui um set de bateria, guitarra elétrica e baixo elétrico.

Outro exemplo é o uso que faz da bateria: perto do final, na secção Credo (inserção de Schnittke que também quebra a tradição dos Requiem), irrompe subitamente, no meio da oração de afirmação da fé, um ritmo muito pop de bateria, perfeitamente descontextualizado! E, no final, em vez de concluir com a tradicional abertura para o além do Lux aeterna, limita-se a repetir o sombrio número inicial. Tal não impede que se trate de uma obra muito espiritualizada, com camadas profundas de atenção musical ao texto. Porém, na URSS de Brejnev, Schnittke, que reconheceu o carácter "profundamente confessional" desta obra, terá considerado que um tal final se adequava bastante melhor à "paisagem" circundante...

O segundo concerto de Páscoa da CdM, Lamento e Paixão, levará à Sala Suggia dois grandes músicos: o oboísta e maestro Alfredo Bernardini e o baixo Peter Kooij. Bernardini é a grande referência do oboé barroco dentro do movimento italiano da música antiga. Já Kooij (n. 1954) é um intérprete quase lendário, que acompanhou desde finais da década de 1970 o enorme florescimento da música historicamente informada na Holanda e Bélgica, de que resultou uma muito ampla discografia. Ficou particularmente ligado ao Collegium Vocale Gent de Philippe Herreweghe e, mais tarde, ao Bach Collegium Japan de Masaaki Suzuki - aqui, no projeto de gravação integral das cantatas sacras de Bach.

No Porto, eles interpretarão obras de, entre outros, Giovanni Benedetto Platti (um Stabat mater), o famoso Concerto para oboé de Benedetto Marcello e a Cantata BWV56 (com baixo solista), de Johann Sebastian Bach. É no dia 24, às 21.00.

Páscoa dá festivais em Guimarães e em Coimbra

Integrado na programação do I Festival de Música Religiosa de Guimarães, a decorrer até dia 26, está o concerto Lamento e Paixão (ver texto principal), que se fará ouvir na Igreja de São Francisco, no dia 25 (às 17.00). Momento muito interessante será amanhã, dia 23, no Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor (às 21.30), com uma versão encenada da grandiosa Paixão segundo São João, de J. S. Bach - obra que, na interpretação dos Coro e Orquestra Concerto Ibérico, teve aliás no passado sábado, na Sé de Castelo Branco, a sua estreia no interior de Portugal.

Encenar obras religiosas de Bach é uma tendência que se tornou corrente Europa fora, mas em Guimarães a novidade é que será cantada numa tradução para português. Dois coros, a Orquestra de Guimarães, cinco solistas vocais, mais atores e bailarinos, sob a direção de Vítor Matos, encarregam-se da performance. A direção artística e a encenação é de Pedro Ribeiro.

O encerramento do Festival é no dia 26, com o Ensemble Elyma, de Gabriel Garrido. Fundado em 1981, em Genebra, os Elyma são um dos grupos de referência do universo da música antiga, tendo-se especializado na música da Europa latina dos períodos maneirista e barroco e na música barroca da América espanhola. Trazem a Guima- rães um programa centrado na Escola Romana, com três expoentes da música da Capela Papal de Seiscentos: Domenico Mazzocchi, Luigi Rossi e a oratória A história de Jefté, de Giacomo Carissimi. Será de novo na Igreja de São Francisco, às 19.00.

Em Coimbra, por sua vez, conclui também esta semana (no dia 25) o IV Ciclo de Requiem, organizado pela Associação Ecos do Passado. O concerto de encerramento cai na Sexta-Feira Santa, às 18.00, na Sé Velha, com o magnífico Requiem Alemão, op. 45 (de 1868), de Johannes Brahms. Intérpretes serão o Coro Sinfónico Inês de Castro (integrando o Coro Spatium Vocale) e a Orquestra do Norte, a que se juntarão o soprano Ana Maria Pinto e o barítono Rodrigo Carvalho. Dirige José Ferreira Lobo.

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