"Um regresso de Trump à presidência dos EUA, para a NATO, seria um pesadelo"

Prestes a iniciar-se o ano em que a Aliança Atlântica assinala o 75.º aniversário, o DN foi ouvir o académico e antigo ministro da Defesa Nuno Severiano Teixeira sobre os desafios, das divisões sobre a Ucrânia ao cumprimento da meta dos 2% do PIB ou à relação com a China.
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A NATO assinala em 2024 os 75 anos da sua fundação confrontada com grandes desafios. A invasão da Ucrânia e consequente guerra veio confirmar que a Rússia continua a ser a maior ameaça para os países da NATO?
Sim, a invasão da Ucrânia não só trouxe a guerra de volta ao continente europeu, uma guerra clássica, imperial e de conquista territorial, como trouxe de volta a nova-velha ameaça à segurança europeia: antes sob a forma da ameaça soviética, agora sob a forma da ameaça russa. Mas trouxe mais: essa nova velha ameaça trouxe um novo sentido à NATO. Durante a Guerra Fria a ameaça soviética dava sentido político à Aliança Atlântica, e fazia da defesa coletiva o centro da sua missão militar. O fim da Guerra Fria e da ameaça soviética transformaram a missão militar da Aliança: da defesa coletiva do Atlântico Norte para a produção de segurança global. A invasão da Ucrânia e o regresso da ameaça russa voltam a dar sentido político à aliança transatlântica, a recentrar a NATO no espaço de aplicação do Tratado e a trazer a defesa coletiva para o centro da sua missão militar.

O conflito na Ucrânia parece ter reforçado a unidade transatlântica, mas dois anos depois do início da guerra essa união no apoio a Kiev parece estar a abrandar. É inevitável?
Sim, a invasão da Ucrânia reforçou a relação transatlântica. Antes da invasão a relação entre os EUA e a Europa estava num momento crítico. Lembra-se: Merkel forçava o acordo de investimento UE-China nas vésperas da tomada de posse de Biden, e Macron dizia que a NATO estava cerebralmente morta. A agressão russa uniu os dois lados do Atlântico que coordenaram política e militarmente a resposta à Rússia. Mas sim, é verdade, ao fim de dois anos de guerra o apoio parece estar a abrandar. Acontece em todas as guerras: é a fadiga da guerra. E verifica-se em todos os domínios: na economia de guerra, necessária para sustentar o esforço de guerra; na política, para manter os consensos no apoio à guerra; e, em particular, nas opiniões públicas, que são fundamentais nas democracias. Porquê? Porque o incumbente que gere a guerra será julgado nas próximas eleições.

Esta ameaça às portas da NATO já levou a Finlândia a aderir e a Suécia a pedir a adesão, até onde é que um alargamento da Aliança Atlântica pode ir? E onde deixa de ser aceitável para a Rússia?
O pedido da Suécia e a adesão da Finlândia à NATO são muito significativos da mudança do quadro de segurança europeia despois da invasão russa. E significa que os dois países escandinavos que, historicamente, sempre consideraram que a neutralidade era a melhor estratégia para garantir a sua segurança, entendem hoje que a neutralidade não lhes garante a segurança e precisam de entrar na Aliança. Sejamos claros, garantir a segurança significa, aqui, garantir a sua integridade territorial. Para a Rússia, e isso ficou muito claro no documento apresentado antes da invasão da Ucrânia, não são aceitáveis todos os alargamentos depois de 1999. Ou seja, todos os antigos membros do Pacto de Varsóvia. A questão põe-se, hoje para a Ucrânia e a Geórgia. Mas, ontem como hoje, a questão é entre o princípio imperial das grandes potências que entendem ter direito a impor esferas de influência e soberanias limitadas aos vizinhos e o princípio democrático dos povos terem direito a dispor de si próprios e escolher democraticamente o seu destino nacional.

Apesar do novo empenho transatlântico, a meta dos 2% do PIB para Defesa continua longe de cumprir pela maioria dos Estados-membros - incluindo Portugal, mas também a própria Alemanha. Apesar da pressão, a resistência vai continuar?
Sim, é verdade, a meta está definida, mas há muitos Estados-membros ainda a fazer o caminho. Mas esse caminho é urgente e particularmente urgente para a Europa. Porque perante o novo quadro de segurança europeia pós-invasão russa e se por alguma vicissitude política norte-americana o vínculo transatlântico enfraquecer e os Estados Unidos não tiverem a Europa nas suas prioridades, então a União Europeia terá que enfrentar as ameaças à sua segurança de forma autónoma. A Alemanha foi um dos países que tomou a sério a mudança do quadro de segurança europeia: mudou radicalmente a sua dependência energética da Rússia e deu prioridade à sua defesa. Pode não ter atingido já os 2%, mas está a fazer consistentemente o caminho e atenção: 2% do PIB alemão transformará a Alemanha na terceira potência com maior investimento militar do mundo. Sobre o caso português tenho dito que é preciso cumprir essa meta com a qual Portugal se comprometeu na Cimeira de Gales, agora, e não nas calendas gregas. O objetivo dos 2% do PIB ficou, aliás, expresso no documento que coordenei para a Revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional e está para discussão na Assembleia da República. Próximo governo o dirá.

A NATO colocou a China entre as suas prioridades estratégicas para a próxima década. As ambições de Pequim são o grande desafio para o futuro?
Sem dúvida. No quadro da competição entre grandes potências e em particular da rivalidade entre os EUA e a China pela hegemonia mundial, a China tem, obrigatoriamente, que estar nas prioridades de qualquer ator internacional. Mas é preciso distinguir com clareza entre o que é a ameaça direta e territorial colocada pela Rússia e o desafio estratégico colocado pela China que é indireto e de uma natureza completamente diferente. Para a NATO são, estrategicamente, duas coisas diferentes.

Um eventual regresso de Donald Trump à presidência dos EUA no próximo ano é um cenário muito provável. Com ele voltaria o fantasma da saída dos EUA da NATO?
Sim, um eventual regresso de Donald Trump à presidência dos EUA no próximo ano, para a relação transatlântica e para a NATO, em particular, seria um pesadelo. O seu fascínio por ditadores e a sua hostilidade para com as democracias não facilitaria as relações com os europeus e a sua conceção transacional das relações internacionais voltaria a pôr em causa o artigo 5.º da NATO e a minar a confiança entre os dois lados do Atlântico. Quanto à saída dos EUA da NATO, voltaria, certamente, o fantasma. Mas uma coisa é o fantasma, outra a realidade. Primeiro, as instituições têm inércias. E uma instituição como a NATO, grande, presada e com 75 anos de sucessos políticos e militares tem resiliência. Segundo, a NATO é ela própria um pilar fundamental para as Forças Armadas norte-americanas que não veriam com bons olhos uma saída. Mas nunca se sabe. Trump é uma surpresa. Sempre má.

O mandato de Jens Stoltenberg como secretário-geral da NATO já foi prolongado, mas no próximo ano deverá ser conhecido o seu sucessor ou sucessora. Para já, são vários os nomes de que se fala - inclusive a primeira mulher secretária-geral. Portugal, como país fundador, nunca teve um secretário-geral. Este pode ser o momento?
Portugal tem uma presença internacional mais à dimensão da sua história do que da sua geografia. País pequeno, já teve um presidente da Comissão Europeia e tem um secretário-geral da ONU. Nunca teve um secretário-geral da NATO. Tem personalidades com mais do que competência pessoal e política para o cargo. Tem uma diplomacia competente. Mas não chega ser fundador.

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