"Um refugiado é um refugiado, seja preto ou branco, venha de onde vier"

Pela primeira vez, atingiu-se os 100 milhões de pessoas que são obrigadas a deixar as suas casas devido a conflitos, mas também às alterações climáticas. A guerra na Ucrânia mudou completamente a situação na Europa, incluindo em Portugal. A UE abriu as portas.
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Tinha um ano quando saiu, ao colo da mãe, da sua cidade, Safad, na Palestina, ocupada por Israel. É Nasri, mediador cultural, e hoje, 74 anos depois, ainda tem medo de ver o rosto ou o nome completo publicado num jornal. A família fugiu para a Síria, onde, já jovem, foi perseguido por questões políticas. Fugiu para o Golfo Pérsico, mais tarde para o Egito e Espanha, até chegar a Portugal, em 2005. Uma realidade bem diferente da que se vive agora no país, com a chegada massiva de milhares de refugiados da Ucrânia, a fugir de uma guerra que contribuiu para que se atingisse pela primeira vez na história os 100 milhões de refugiados.

Nasri conta a sua história no Centro de Acolhimento de Refugiados 2, em São João da Talha (Loures), que passa por trabalhar para o Centro Português para os Refugiados (CPR). Em 2006 tornou-se a cara do então novo centro de acolhimento e esteve 13 anos na receção. É, desde 2019, mediador cultural, acompanhando as famílias de língua árabe. "Pedi asilo em Portugal, deram-me os papéis para ir ao CPR, a primeira coisa que estava na minha cabeça era aprender português. Um mês depois perguntaram-me se queria fazer parte do grupo de teatro, hesitei, nunca tinha ido ao teatro. Entrei e foi muito bom para aprender, o grupo tem mais de 10 nacionalidades, e o que é que têm em comum? A língua portuguesa." E diz que essa participação foi fundamental para falar português, a chave para a sua integração.

Aprendeu nas aulas de Isabel Galvão, professora de português no CPR e que há 25 anos ensina os refugiados. Com uma regra: só falar português, seja com os que chegaram há meses ou há dias. É dos poucos espaços com continuidade no ensino da língua portuguesa, algo de que os migrantes sentem falta.

Assistimos a uma dessas aulas na última semana, onde a professora passou um slide de um casal e a mulher com um bebé nos braços. Nasri chamou a atenção para o que bem podia ser a sua família há 74 anos, quando esta fugiu da Palestina. Ele ao colo da mãe, o pai e dois irmãos. Nasceria uma quarta filha já na Síria.

"Os exércitos da Jordânia, Egito e Síria uniram-se para Israel ocupar a Palestina, os meus pais souberam e tiveram 24 horas, fugiram sem nada, só com a roupa. Houve a divisão do território e a minha cidade, Safad, perto da fronteira com a Síria, ficou sob o domínio de Israel. Mesmo que queira, não posso voltar ao meu país, é outro país", explica o mediador cultural.

Instalaram-se na Síria, onde Nasri cresceu. "Foi muito difícil, um refugiado sofre a situação de refugiado em qualquer país. Mesmo falando árabe, tinha um sotaque diferente. E na Síria não há uma cultura de acolhimento dos refugiados, diziam-me para voltar para a minha terra. Como, se não tenho terra?" Estudou e entrou para a universidade em Literatura Árabe, adensou o sentimento de revolta contra a política síria e escreveu sobre isso, incluindo manifestos.

Foi perseguido pelos serviços secretos, esteve três anos preso. Quando saiu, recusou fazer o serviço militar: mais dois anos atrás das grades. Libertado, fugiu para o Golfo Pérsico, onde viveu 10 anos, chegando a diretor de vendas de cursos de inglês da BBC. Resolveu migrar para o Egito, onde viveu "um ano e dois meses", migrou depois para Espanha, mais 18 anos numa nova nação. Até que resolveu vir para Portugal, onde chegou a 2 de fevereiro de 2005. "O meu caso é político, estava contra o governo sírio. Não peguei em armas nem em pedras, peguei em canetas."

Tem uma dívida de gratidão para com o CPR: "Sinto-me 100 % integrado na cultura portuguesa." Mas nunca pensou pedir a nacionalidade portuguesa. "Nasci palestiniano e vou morrer palestiniano!"

Quando chegou, em 2005, Nasri foi viver para o primeiro centro de acolhimento do CPR, instituição que desde 1991 apoia requerentes de asilo e refugiados em Portugal. Lembra-se de que eram 14 pessoas, meses depois o número subiu para 38 e, passado um ano, 120. Houve necessidade de construir um novo espaço, mais tarde um segundo, além de um edifício para crianças.

Ainda assim, Portugal tem "uma fraca tradição de receber refugiados", sublinha o estudo Integração de refugiados em Portugal: papel e prática das instituições de acolhimento, publicado em 2021. Chegavam ao país sobretudo os chamados refugiados espontâneos (pelos seus próprios meios) e com poucos vistos de asilo atribuídos.

A situação destes fluxos migratórios na Europa mudou a partir de 2012, com a guerra civil na Síria. Em 2015 foram apresentados 1,3 milhões de novos pedidos de asilo nos países comunitários; em 2016, mais 1,2 milhões (Eurostat), o que obrigou a União Europeia a adotar medidas de emergência e a criar programas de acolhimento. Portugal foi integrado nessas medidas.

O país recebeu entre 1469 (2016) e 1848 (2019) pedidos de asilo anuais, muitos por via de programas de recolocação (UE) e de reinstalação (Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). As concessões do estatuto de proteção internacional (asilo) foram muito inferiores. Mais facilmente é usada a proteção subsidiária, por razões humanitárias.

Com a pandemia, os números baixaram (1002 pedidos em 2020), aumentando no ano passado, com a tomada do Afeganistão pelos talibãs. Mas sem "um plano nacional estruturado de acolhimento e integração de refugiados" o apoio a essas pessoas decorreu no âmbito de "uma manifestação de disponibilidade espontânea por parte da sociedade civil, que se concretizou no desempenho de um papel fundamental em todo o processo de recolocação, ao mesmo tempo que o Estado português mostrou muitas debilidades para executar na íntegra essas funções e apoiar o trabalho das instituições de acolhimento", conclui o mesmo estudo. Estudaram 97 instituições e, em 2021, 52% disseram não pretender continuar a receber refugiados.

Com a Rússia a invadir a Ucrânia, a 24 de fevereiro, o panorama mudou completamente, com a UE a acionar o mecanismo de proteção temporária. Sete milhões de pessoas deslocaram-se das suas casas em dois meses (ver entrevista a António Vitorino nas págs. 6 e 7). Portugal atribuiu até ao momento 42 mil destes estatutos. Tem uma comunidade de ucranianos grande - 28. 621 residentes em 2020 e 11.183 que adquiriram a nacionalidade portuguesa - e muitos dos que vieram são familiares e amigos.

Lúcio Sousa, o coordenador do trabalho académico, acredita que alguma coisa mudou no último ano. "Sentimos um grande esforço das instituições locais no acolhimento dos refugiados. Algumas diziam não estar dispostas a continuar, mas penso que a situação terá mudado. Até porque há um grupo de novas instituições, além de outras, como a PAR [Plataforma de Apoio aos Refugiados], a CPR e a JRS [Serviço Jesuíta aos Refugiados], que se mantêm no terreno e têm um papel importante", diz.

Uma das razões para a mudança terá sido uma maior intervenção do Alto Comissariado para as Migrações (ACM). "Foi-lhe atribuído um novo papel, adquiriu mais responsabilidade, mas não estudámos se está a alcançar os objetivos. Acho sobretudo que há uma maior abertura da sociedade portuguesa e começa a haver uma cultura sobre esta matéria, com pessoas a voluntariarem-se para trabalhar e ajudar", acrescenta. A sua equipa pensa fazer essa avaliação.

Nasri não se quer meter na política portuguesa, mas diz não deixar de sentir uma sensação de injustiça em relação ao apoio que está a ser dado aos refugiados da Ucrânia. "Um refugiado é um refugiado, seja preto ou branco, venha de onde vier. Estive um ano e dois meses para conseguir o meu cartão de residência. Chega uma pessoa da Ucrânia e tem logo residência, número da Segurança Social e de utente no Serviço Nacional de Saúde." São acolhidos ao abrigo de uma medida extraordinária da UE, proteção temporária, a questão é porque é que o Conselho da Europa não utilizou esse mecanismo anteriormente.

Laurinda Alves, vereadora da Câmara Municipal de Lisboa com o pelouro dos direitos humanos e sociais, também abordou a eventual discriminação no acolhimento de outros cidadãos vindos da Ucrânia que não os ucranianos. Estes constituem 12,3 % dos vistos de proteção temporária no país, com a Nigéria e a Índia no topo da lista. São estes nacionais que constituem a maioria dos que esperam no centro de acolhimento de emergência (CAE), bem como do Paquistão, Argélia, Marrocos e Costa do Marfim.

"Há uma situação de maior emergência e cerca de 70/80 pessoas acabaram por ficar no CAE durante algum tempo. O facto de não serem brancas e de haver algum preconceito, não queria chegar à palavra racismo mas também não posso evitá-la..., as pessoas olham e acham que não são refugiados da guerra da Ucrânia. Ainda noutro dia dizia que seriam os primeiros que levaria para minha casa. São jovens, muitos deles com habilitações literárias, estudantes e formados, uma força de trabalho incrível. E são triplamente vítimas de uma guerra. Foram para a Ucrânia à procura de melhores condições de vida, escaparam a uma guerra e, chegam cá e por uma questão de cor de pele, não são os primeiros a ser acolhidos, são deixados para trás", lamenta Laurinda Alves. Ontem tiveram um dia diferente, foram ao Rock in Rio.

A vereadora esperava encontrar uma solução de alojamento antes do Dia Mundial do Refugiado, mas não o conseguiu, até porque pretende que seja mais duradoura. Será através do programa Porta de Entrada, criado pelo governo para subsidiar as rendas de casa na Área Metropolitana de Lisboa para oriundos da Ucrânia, com um valor limite, dependendo do tipo de habitação.

Até maio, 5917 pediram proteção temporária em Lisboa, destes, 2339 (549 agregados familiares) passaram pelo CAE, instalado num pavilhão da Polícia Municipal. Laurinda Alves destaca o trabalho em rede: "A articulação entre a sociedade civil, as organizações e o governo, Segurança Social, ACM, SEF, municípios, juntas de freguesia, funcionou de uma forma mais que perfeita, um exemplo extraordinário que deveríamos levar para outras situações de crise. Permitiu que o número de pessoas que ainda está à espera de ser integrado seja residual."

ceuneves@dn.pt

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