Um rato, umas águas quentes e uma guerra

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Podem contar-se muitas histórias sobre a guerra, os motivos, a ilegitimidade, a ocupação selvagem.

Pode trazer-se de novo a historinha contada por Putin relativa ao encurralamento de um rato. Putin, enquanto jovem, tinha um divertimento bizarro. Conta ele que caçava ratos para se entreter. Um dia encurralou um numa esquina entre duas paredes em ângulo reto. O rato não tinha como escapar. Quando, porém, vai deitar a mão ao rato este salta e arranha-o na cara, põe-no em sangue e foge. Pode ser verdade. Palpita-me que é uma efabulação que justifica bem o que se passa hoje. O rato é Putin. Ou Putin é o rato.

O rato sentiu-se encurralado? Acho um exagero. Mesmo com os movimentos recentes da Ucrânia e a aproximação ao Ocidente acho sinceramente uma desculpa de mau pagador. Agora que é alibi, isso sim, funciona como tal.

O rato sentiu-se preso à sua condição de rato? Disso não tenho dúvidas.

O rato perderia o seu território natural e ficaria para a história como um perdedor? Claro que sim. Foi isso que aconteceu na Crimeia. Por razões mais ou menos óbvias. O rato queria "tomar banho" em Sebastopol, único porto de águas "quentes" com acesso comercial ao Mediterrâneo e depois ao canal de Suez ou ao Atlântico. Sim porque a Rússia, como Rússia, não tem acesso a lado algum através de portos com possibilidade de abertura 365 dias por ano. Através de Sebastopol isso é possível. E mesmo com as dificuldades todas que isso acarreta. Sebastopol é um porto no Mar Negro (e na Crimeia, ocupada, mas que é pertença da Ucrânia).

O acesso ao Mediterrâneo faz-se por meio do estreito do Bósforo cuja gestão está atribuída à Turquia desde a convenção de Montreaux, em 1936. É claro que a marinha naval russa transita pelo estreito mas em números muito limitados. Em caso de conflito tal não seria possível porque o estreito interromper-se-ia para a Rússia. É ainda necessário, pós-Bósforo, passar pelo mar Egeu para chegar ao Mediterrâneo. E depois passar o Estreito de Gibraltar para chegar ao Atlântico. Ou seja, a Rússia vive arredada do mar e da economia do mar o que lhe é claramente prejudicial nos dias que correm.

Porque será que o rato quer a Ucrânia? Porque a Ucrânia tem o porto de Mariupol, no mar de Azov, e tem Kherson, no rio Dniepre que faz ligação ao mar Negro. Mas tem, principalmente, Odessa, que permitiria à Rússia um outro fôlego em termos comerciais via marítima. O porto de Sochi, o único porto russo no mar Negro é uma infraestrutura pequena e não tem grande potencial. Além de que as águas gelam no inverno. Tem estado limitado quase a navios de passageiros e faltam-lhe águas profundas, asseguradas pelos portos da Ucrânia.

Isto dito, o rato pretende mar. E mar para poder transacionar comercial e economicamente com todo o mundo e, mais que nunca, com a China. Assim, e se outros motivos não existissem, como o estafado argumento de que a Ucrânia é território que Deus atribuiu à Rússia, o rato vai continuar a bater-se pela Ucrânia. Não parte da Ucrânia. Toda a Ucrânia.

Uma coisa é certa. Não esperava esta resistência. Zelensky é um belíssimo comediante mas também um líder e um chefe de estado do melhor que se tem conhecido até aqui. Corajoso, comunicador, capaz de fazer estremecer quer o Kremlin quer o Ocidente a cada comunicação. E mais. Capaz de, através da popularidade que angariou, unir um povo que sempre esteve mais ou menos dividido entre parte Oriental e Ocidental.

Volte-se à logística. Os erros foram muitos nesta guerra. Subestimou-se a Ucrânia e a sua capacidade de resistência. O poder das tropas russas esteve descoordenado. Os mantimentos e a água não foram suficientes. E a moral das tropas não foi sequer trabalhada. As hostes não sabiam tão pouco ao que iam. Já não é possível, neste momento, nenhum blitzkrieg. Resta apenas como possível o cerco total a Kiev, por tanques de guerra e armamento pesado, ao mesmo tempo que um ataque aéreo sem precedentes à capital. Ou seja, os dias vão piorar nos próximos tempos pois muito embora Kiev não seja estratégico em termos económicos faz parte das memórias mal contadas da Rússia de Kiev. O rato sabe disso. Pelo que Kiev faz parte, também, da tomada de poder e da nomeação de um governo pró-russo para a Ucrânia. Kiev sairá devastada e totalmente destruída desta contenda.

No final, tomados os portos de mar, o rato terá o que quer. Terá? E a possibilidade de pensar em frota marítima e em desenvolvê-la a toda a velocidade. Não obstante, à custa de um banho de sangue.

Mas um rato será sempre um rato. A visão do rato é a da fuga para a frente, i.e., será sempre a do salto da esquina no sentido de salvar a sua própria vida. O rato solitário deixa no seu rasto as consequências do seu próprio caminho. Na invasão de Geórgia deixou o Rublo com menos 20% de valor. Sobre este 20%, e com a anexação da Crimeia, deixou menos 45% de valor. Finalmente, e com a invasão da Ucrânia tirou o Rublo dos mercados. Em termos económicos, a Rússia está totalmente falida. Um caminho de sangue também para o povo russo. Seria a altura boa, sem dúvida, para perguntar ao rato o que fez pela "sua" ninhada.

Presidente do Iscte Executive Education

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