Um raio de sol sobre as crianças de Chernobyl
Illia domina a bola, finta um dos cães da casa e contorna a piscina, chuta e acerta na copa de uma das árvores. Aproveita a manhã soalheira para brincar no jardim, intervalando o futebol com uns golpes de luta, que pratica mais a sério no seu país.
Na azáfama antes da hora do almoço, não diz uma palavra em português, ainda, mas sorri muito. Nas traseiras da moradia em Ovar, a Lígia sorri com ele, enquanto o marido Vítor Martins constata com espanto: "Ele adora jogar à bola, mas é a primeira vez que conheço alguém que não sabe quem é o Cristiano Ronaldo. Uma das coisas que temos previstas fazer é levá-lo a ver o jogo de apresentação do FC Porto."
Este seria um habitual dia de férias para um rapaz de 10 anos, caso não fosse a primeira semana da vida de Illia longe de Ivankiv, na Ucrânia.
A povoação mais próxima da zona interdita em redor de Chernobyl fica a cerca de 50 km da central desativada, onde em 1986 aconteceu o maior acidente nuclear da história, que libertou uma radiação 100 vezes superior às bombas atómicas que caíram em Hiroxima e Nagasaki. Ivankiv é um lugar inóspito: na cidade de 11 mil habitantes e nas aldeias vizinhas a contaminação radioativa da vizinhança vai sentir-se durante os próximos séculos e fará multiplicar entre a população que vive na região casos de cancro, doenças cardíacas e outros problemas de saúde.
Illia é uma das 37 crianças que este ano integram o Verão Azul, projeto lançado em 2009 pela companhia de seguros Liberty, que proporciona a miúdos dos 6 aos 16 anos, da região de Chernobyl, cinco semanas de férias com famílias de acolhimento em Portugal
Para Lígia e Vítor Martins, corretores de seguros em Ovar, esta é uma experiência completamente nova para eles e para os três filhos: Inês, de 24 anos, Patrícia, de 21, e Alexandre, de 13 anos, que chegou a ser notícia pelo seu caso de sucesso após um transplante hepático aos seis meses de vida.
"Vi neste projeto uma possibilidade de retribuição. Em novembro do ano passado, fui à Ucrânia e visitei algumas aldeias em Ivankiv, aglomerados de quatro ou cinco casas muito pobres. Estão a 70 km de Kiev, mas longe de tudo. Conheci a família do Illia: a mãe e os irmãos - com 3 meses, 3 anos, 7 anos -; o pai está na guerra, na frente de combate aos russos no leste da Ucrânia", recorda Lígia.
Em véspera de fazer 10 anos (faria no dia seguinte ao receber a reportagem do DN), o jovem ucraniano ainda não sabia que lhe estavam a preparar uma festa de aniversário. Os primeiros dias em Portugal tiveram muita agitação, desde que há oito dias chegou ao aeroporto de Lisboa com a restante comitiva.
Logo no primeiro dia, Illia viu o mar pela primeira vez. O iodo da praia do Furadouro traz-lhe grandes benefícios à saúde. "Quis ir logo à água, que é gelada, mas ele achava que estava ótima", recorda Lígia. "Ele tem sido um poço de surpresas", diz Vítor Martins, detalhando: "Toca guitarra, pratica luta, soubemos entretanto que fala um bocadinho de inglês, gosta de desenhar, tem bons hábitos de higiene. Nota-se que teve acesso a uma boa educação."
A bagagem que Illia trouxe para cinco semanas é parca: dois pares de cuecas, dois pares de meias, um fato de treino, uma t-shirt... Além de um dicionário de ucraniano-português, um livro de histórias e outro religioso. Não faltam, porém, presentes para a sua família das férias: "A primeira preocupação dele foi abrir a mala. Vinha muito leve, mas cheia de coisas para nós. Artesanato em madeira, por exemplo."
"Futuro? Trabalhar em Portugal"
Nastya Kot também traz na bagagem alguns presentes para Rosário Barbosa e para o marido, Luís Ruas. Este casal, ambos técnicos de tráfego aéreo no Aeroporto do Porto, que vive em Árvore, Vila do Conde, é desde 2015 a família de acolhimento da jovem de 12 anos, que trouxe na mala coisas tão simples e com tanto significado como uma garrafa de plástico com uma vodka caseira feita pelo avô, um pin para o frigorífico, um pão típico ucraniano que ficou duro porque a bagagem perdeu-se na chegada a Lisboa.
Nastya tem uma intimidade notória com Rita, de 17 anos, e Clara, de 13, as filhas do casal que se tornaram amigas. "Ela percebe tudo, mas não diz muitas palavras em português", dizem. A resposta não tardou: "Otorrinolaringologista", graceja Nastya, para mostrar que palavras difíceis já aprendeu.
A comunicação não é fluida, mas a jovem já se faz entender em português: "Gosto da praia, que aqui é muito diferente. Do sol. De comer bananas, pastéis de nata..." "Lá tinha alguns problemas de estômago. Aqui nada lhe fez mal. Mesmo quando comia às cinco natas por dia", começa por dizer Rosário, que há dois anos se candidatou para acolher uma menina com uma idade não muito diferente da das suas filhas e ao fim de um par de meses estava a visitar as aldeias ao redor de Ivankiv. Conheceu a família de Nastya, em particular a mãe, Tatyana, "que é professora, mas recebe 60 euros por semana". Não é por acaso que, quando lhe perguntam sobre o futuro, Nastya fale em Portugal. "Gostaria de vir para cá um dia trabalhar: ser massagista ou fisioterapeuta", diz Nastya, cuja irmã, Anya, de 16 anos, é uma das pioneiras do projeto e voltou este ano já como monitora.
"Aqui passam um mês no paraíso"
Anabela Pereira, técnica de tráfego aéreo no Aeroporto de Lisboa, recebe há três anos Bogdan, um rapaz de 10 anos que se tornou amigo do seu filho, Jonas, de 13. "Vir a Portugal é uma espécie de termas para uma criança que está exposta à radiação ao longo do ano inteiro. Até ver, ele não apresenta problemas de saúde, exceto umas cáries (decorrentes de alguma descalcificação dentária). Mas vai ao dentista na próxima semana. Aqui passam um mês no paraíso. Damos-lhe o melhor. Lá não têm coisas tão essenciais como o sol ou um tablet para brincar", diz.
Fernando Pinho, que além de responsável pelo projeto, que todos os anos viaja para a Ucrânia e coordena a distribuição das crianças famílias, é também membro de uma família de acolhimento.
Foi um dos pioneiros e desde 2009 recebe em sua casa a jovem Kateryne Panamarenko, uma jovem que canta e toca piano e até já participou num concurso de talentos na Ucrânia. Acompanhou o seu crescimento desde os seis anos, na altura em que foi abandonada pela mãe, e agora considera que Kateryne já "faz parte da família". Este comercial de seguros salienta a importância de um mês por ano ajudar a fazer raiar o sol sobre uma vida cinzenta dos meninos de Chernobyl e "abrir-lhes horizontes" para um futuro melhor e sintetiza numa só frase o que o move: "Recebo mais do que o que dou. No fim, é isso que conta."