Um projeto feito de dois filmes

João Canijo concebeu<em> Mal Viver</em> e<em> Viver Mal</em> como dois filmes que ecoam um no outro. Curiosamente, na história do cinema encontramos muitas variações, artísticas e comerciais, de filmes "duplos" que, de um modo ou de outro, dialogam entre si.
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Para lá da sua excelência artística, Mal Viver e Viver Mal refazem um modelo, ou melhor, uma "entidade" que, de forma irregular, tem pontuado a história do cinema. A saber: João Canijo realizou dois filmes que dialogam entre si. A situação é tanto mais interessante quanto sabemos que, nestes tempos difíceis para a vida comercial dos filmes nas salas (incluindo, claro, muitas produções portuguesas), são bem-vindas as variações da oferta cinematográfica, apelando ao gosto da descoberta por parte dos espectadores.

Convém acrescentar que Mal Viver e Viver Mal se espelham de modo muito direto: no primeiro, conhecemos a família proprietária de um hotel, algures na costa norte de Portugal; no segundo, revemos o hotel (e algumas pontas soltas de cenas do primeiro filme) através das histórias cruzadas de vários hóspedes. Aliás, dizer que há um "primeiro" e um "segundo" filme é discutível, já que, em boa verdade, os podemos conhecer por qualquer ordem.

Nem sempre aconteceu assim nos exemplos que encontramos na história do cinema. Algumas obras clássicas são esclarecedoras. Lembremos, do mudo alemão, Os Nibelungos (1924), de Fritz Lang, em que A Morte de Siegfried precede A Vingança de Kriemhild. Ou ainda o épico histórico de Bernardo Bertolucci, 1900, dividido em duas partes cuja estreia, em Lisboa, ocorreu em simultâneo, mas em salas diferentes (a 12 de fevereiro de 1977, com a primeira parte no São Jorge e a segunda no Mundial).

João Canijo concebeu dois filmes que ecoam um no outro. À maneira do maravilhoso Fumar/Não Fumar (1993), de Alain Resnais. O certo é que, por vezes, a decisão de apresentar um determinado título em duas partes resulta menos de um conceito estético ou narrativo, e mais de uma forma de contornar a possibilidade de, por "critérios" de exibição, a sua duração ser drasticamente reduzida. Aconteceu com 1900, precisamente: de acordo com a montagem aprovada por Bertolucci, a duração total das duas partes excede as cinco horas (317 minutos), mas nos EUA foi lançado numa versão "abreviada" (247 minutos). Aconteceu também com Kill Bill, de Quentin Tarantino, lançado como Volume 1 e Volume 2 (respetivamente em 2003 e 2004), e Ninfomaníaca (2013), de Lars von Trier, dividido em Parte 1 e Parte 2. Por vezes, a ambição espectacular do projeto determina a sua divisão em dois filmes com estreias separadas por um intervalo significativo; assim será com Missão Impossível - Ajuste de Contas, com Tom Cruise, cuja primeira parte chegará a 12 de julho, estando a segunda prevista para um ano mais tarde (28 de junho de 2024).

Cada caso é um caso. Tudo isto pode envolver as mais diversas razões artísticas ou comerciais, na certeza de que os exemplos mais recentes já nada têm que ver com o conceito de "serials" (uma história com muitos episódios de duração relativamente curta) cujo auge de popularidade aconteceu nas décadas de 1930/40 - escusado será dizer que tal conceito se "reconverteu" nas séries das televisões e dos serviços de streaming. Seja como for, a singularidade de Mal Viver e Viver Mal não será estranha ao desejo de desafiar o espectador para a redescoberta do cinema como fenómeno narrativo de muitas e sugestivas durações... Nada a ver, claro, com as centenas de horas de uma telenovela.

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