Um Prémio Valmor para o que ninguém quer ver (ou cheirar)
Quando o arquiteto Manuel Aires Mateus fala do trabalho em Alcântara, Lisboa, que lhe valeu o Prémio Valmor e Municipal de Arquitetura de 2013, é breve e simples: "Pediram-nos para cobrir a ETAR e fazer um edifício para os trabalhadores da empresa e para a administração." Duas perguntas, uma resposta: "Uma cobertura habitável", resume o mais recente vencedor do Prémio Pessoa para as cerca de 25 pessoas que se inscreveram numa visita guiada pela construção na manhã de sábado, um dos raros momentos do ano em que é possível cruzar os portões cinzentos das instalações sob este tapete verde de dois quilómetros quadrados de área que se confunde com a paisagem de Monsanto.
Em menos de uma década, a ETAR passou da poluição visual e olfativa à quase invisibilidade. "Manipulámos as cotas para termos a sensação de que continuamos pelos jardins", continua. O jardim, por outro lado, "diminui o impacto da construção nesta zona de Lisboa", justifica Aires Mateus.
"Existe o plano de construir um corredor verde junto à Avenida de Ceuta. Isso é possível também por causa deste projeto", considera Pedro Álvaro, diretor de operações da Tejo Atlântico, a empresa da Águas de Portugal que gere a ETAR, rebatizadas de Fábrica de Água, produtora de energia e de água não potável que já é usada para lavar ruas, por exemplo.
Quando Pedro Álvaro começou a trabalhar neste projeto a estação de tratamento de águas residuais eram quatro tanques a céu aberto. Esteve na elaboração do caderno de encargos, acompanhou o projeto dos arquitetos e a sua execução quando a companhia ainda era Sim Tejo, a promotora da construção. Ao longo da visita, salienta, mais do que uma vez, como foi importante que a empresa chamasse a si o projeto de arquitetura.
"Havia uma preocupação muito grande. Se optássemos por uma solução conceção-construção, corríamos o risco de ter uma boa solução técnica e uma má de arquitetura, e vice-versa. Então, a Sim Tejo optou por deixar a arquitetura do lado da empresa. Uma das premissas era fazer a continuidade de Monsanto, criar aqui uma mancha verde e enquadrar na paisagem", explica.
A ideia vencedora, de Manuel Aires Mateus e Frederico Valsassina e do arquiteto paisagista João Ferreira Nunes, de 2004, começou a ser posta em prática em outubro de 2006, enquanto a ETAR continuava a funcionar.
Nesta fábrica, a maior do país, servindo cerca de 750 mil habitantes dos concelhos de Lisboa, Amadora e Oeiras, é preciso cruzar a porta com o sinal de "acesso restrito" para se chegar à zona pesada - onde se faz a desodorização, filtragem, separação e limpeza da água que há de voltar ao caneiro de Alcântara e, daí, ao rio Tejo. O longo caminho de betão que nos conduz da entrada aos parques de estacionamento e ao edifício da administração é mais próprio do filme de ficção científica do que da indústria.
"O Manuel e eu, cada um com o seu percurso, já tínhamos trabalhado muita obra com betão à vista, com um cuidado extremo. Quando esta obra começou a decorrer, ficámos muito preocupados porque a qualidade do betão não era a que gostávamos, mas viemos a aprender - foi das obras em que aprendi mais - que esta qualidade nesta dimensão era surreal, não era importante", diz Frederico Valsassina dirigindo-se aos visitantes, muitos estudantes de Arquitetura. Chama a atenção para as imperfeições do material e continua: "Se olharem para estas zonas, o betão talvez não tenha uma [grande] qualidade, mas ele não deveria ter e não é minimamente importante." E conclui: "Aqui envelheceu francamente bem."
Valsassina explica que o arquiteto João Ferreira Nunes criou um jardim com as espécies que vivem em Monsanto, alimentadas pela água tratada na ETAR. "Inicialmente, ele foi desenhado como um jardim público, mas depois não pôde ser por razões de segurança", continua. Nas traseiras ficam dez lotes de terra que estavam destinados a hortas urbanas, um projeto que ainda não avançou pelas mesmas razões de segurança. Nessa zona, os dois arquitetos estudavam a ampliação do edifício a pedido da Tejo Atlântico. "Continuaremos com o mesmo princípio", diz Valsassina. "Achamos que o projeto não deve mudar e que as intervenções devem seguir a ideia do projeto, que é clara - esta necessidade de cobrir todas as funções necessárias. É uma resposta única para todos os problemas." De novo com Manuel Aires Mateus e Frederico Valsassina.
O regresso do prémio
Esta dupla, que já tinha recebido uma menção honrosa pela ampliação de um edifício de habitação na Rua Rosa Araújo, na última edição do Valmor, em 2012, voltou a ser distinguida no final de 2017, quando o prémio, instituído em 1903, voltou a ser entregue - e com retroativos. Em parceria com a Trienal de Arquitetura, a Câmara Municipal de Lisboa premiou também (texto ao lado) o Museu do Dinheiro - Banco de Portugal (2014), os Terraços do Carmo (2015) e a reabilitação do Cineteatro Capitólio (2016), e atribuiu ainda dez menções honrosas a projetos dos arquitetos João Luís Carrilho da Graça, João Paulo Feio Ribeiro Mateus e José Adrião (2013); Luís Maria Rebelo de Andrade, Daniela Hermano e João Carrasco (2014); Ana Mafalda Sequeira Batalha, Paulo Mendes da Rocha, Ricardo Bak Gordon e João Ferreira Nunes (2015); e Pedro Lagrifa Carvalhais de Oliveira e Amanda Levete (2016).
Valmor abrem ao público
Os edifícios premiados e os arquitetos que os conceberam voltam a juntar-se nas próximas semanas em visitas gratuitas abertas à população e conferências em torno dos projetos:
Vencedor de 2014 - Museu do Dinheiro, Banco de Portugal
De Gonçalo Byrne e João Pedro Falcão Campos
O objetivo do projeto dos dois arquitetos era abrir o edifício, a antiga igreja de São Julião, à cidade. Na intervenção ganhou importância a arqueologia, revelando as camadas de sucessiva ocupação da cidade tão antigas quanto o século I, que foram incorporadas no programa. É aqui que funciona hoje o Museu do Dinheiro.
Conferência com João Pedro Falcão Campos hoje, às 18.00, no CIUL - Centro de Informação Urbana de Lisboa.
Visita à obra com Gonçalo Byrne e João Pedro Falcão Campos, sábado, dia 20, às 11.00, no Largo de São Julião, 150.
Vencedor de 2015 - Terraços do Carmo
De Álvaro Siza com Carlos Castanheira
Inaugurados em 2015, os Terraços do Carmo integram a recuperação do Chiado, após o incêndio de 1988, segundo o plano do primeiro Prémio Pritzker de arquitetura. Ocupam 1500 metros quadrados em três níveis diferentes. O percurso permite a descida até à Rua do Carmo ou Rua Garrett desde o Largo do Carmo.
Visita à obra na terça-feira, dia 23, às 14.30 com Carlos Castanheira e Pedro Carvalho, no Largo do Carmo.
Conferência com Álvaro Siza, também no dia 23, às 17.00, no CIUL - Centro de Informação Urbana de Lisboa.
Vencedor de 2016 - Cineteatro Capitólio
De Alberto Souza Oliveira
O Teatro Capitólio, no Parque Mayer, é um edifício da autoria de Luís Cristino da Silva e foi inaugurado em 1931. Após um período de degradação (e de portas fechadas) recebeu obras a partir de um projeto de Alberto Souza Oliveira.
Conferência com o arquiteto Alberto Souza Oliveira, terça-feira, dia 29, às 18.00, no CIUL - Centro de Informação Urbana de Lisboa.
Visita guiada à obra com o arquiteto, no sábado, dia 3, às 11.00, no Parque Mayer
As conferências acontecem no CIUL - Centro de Informação Urbana de Lisboa (Picoas Plaza, Núcleo 6-E, 1º esquerdo, Rua Viriato, 13) e as visitas (até 25 pessoas) são gratuitas e requerem marcação prévia através do site da Trienal de Arquitetura ou Eventbrite.