Um Prémio Roma muito especial, recordando Dante

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Terá lugar nesta tarde no Palácio dos Condes de Pombeiro, sede da Embaixada de Itália em Portugal, a cerimónia de atribuição do Prémio Roma-Lisboa ao escritor António Mega Ferreira. Trata-se de um prémio muito especial, por diversas razões que se cruzam por estes dias com os Dias de Dante.

Prestigioso reconhecimento literário dedicado a autores de língua italiana, o Prémio Roma decidiu a partir de 2004 construir pontes ideais com as mais importantes cidades do mundo, atribuindo especiais prémios internacionais a cidades e autores estrangeiros. Em 2020 foi a vez de Lisboa, e o autor escolhido António Mega Ferreira.

A cerimónia deveria ter decorrido na primavera do ano passado, mas a emergência pandémica impossibilitou qualquer encontro presencial, remetendo-nos gradualmente, depois de repetidos adiamentos, para o outono de 2021. Hoje podemos, finalmente, realizar uma cerimónia oficial, a primeira depois do rigoroso isolamento a que fomos obrigados. E se considero já por si especial a possibilidade do reencontro com o extraordinário país que nos acolhe, parece-me ainda mais extraordinário que a data da cerimónia tenha vindo a coincidir com as celebrações que decorrem em todo o mundo, por estes dias, em homenagem a Dante Alighieri.

Poeta artífice por ter moldado a nossa cultura mais profunda e com ela a língua, Dante quis escrever a Comédia em italiano, e não em latim, para que a sua palavra pudesse chegar a todos, para que fosse acessível a cada leitor, e através dessa escolha "terrena" fundou a identidade de um povo. E fundou-a na condição de exilado, transfigurando a concretude do real, embora duríssima, em imagem poética, fazendo da errância uma viagem em busca da alma do mundo, um mundo que graças à sua visão extraordinariamente aguda torna-se eterno, intemporal, capaz de falar através dos séculos e de lembrar perenemente o valor da arte enquanto farol da peregrinação humana em busca do Absoluto. Dante é, com toda a evidência, um símbolo: de beleza, de poesia, de amor à justiça, de humanismo e, naturalmente, da Itália. E por esse seu valor simbólico continua atual. Encontramos a sua obra nos mangas de Gō Nagai e nas pinturas de Salvador Dalí, encontramo-la na poesia de Mallarmé e em The Waste Land, de Thomas Stearns Eliot, na cultura pop e rock, encontramo-la nos autores de todas as épocas e de todo o mundo, no Portugal de Camões e de Eça de Queiroz, de Rui Chafes e de António Mega Ferreira.

Assim, a efeméride dos 700 anos de Dante veio ampliar o significado deste Prémio Roma ao autor de O Essencial sobre Dante Alighieri. E para reforçar a sua profunda ligação intelectual à Itália de Dante, António Mega Ferreira proferirá uma lectio magistralis com o título "Dante no exílio". A cerimónia de hoje constituirá portanto o encontro simbólico entre os universos culturais de Itália e Portugal, encontro esse que resulta evidente na obra de Mega Ferreira. De entre os seus livros, recordarei aqui apenas Roma - Exercícios de Reconhecimento e Itália - Práticas de Viagem, os primeiros dois títulos da chamada "trilogia italiana" que se completará em breve com as Crónicas Italianas.

Como se não bastasse esse imaginário literário, sempre evocado e revisitado, para justificar a escolha do Prémio Roma, mais razões reforçam o reconhecimento que a Itália tributa a Mega Ferreira. Cada uma dessas razões tem uma brilhante tradução, lombada e capa, incluídas numa coleção da Imprensa Nacional denominada ITALICA, que tem divulgado junto dos leitores portugueses os autores do nosso cânone, de Buonarroti a Ungaretti. O mais recente dos títulos no prelo é uma tradução da Divina Comédia.

A modernidade de Dante protagoniza também as comemorações que decorrem na Fundação Calouste Gulbenkian, a cujo administrador executivo, Dr. Guilherme d'Oliveira Martins, agradeço profundamente, em nome meu e do governo italiano, a colaboração e a hospitalidade que nos têm permitido realizar estes Dias de Dante. Foi inaugurada ontem a exposição Visões de Dante: O Inferno de Botticelli, fruto da colaboração de Fundação Gulbenkian, Embaixada de Itália em Portugal e Instituto Italiano de Cultura com as mais prestigiosas instituições académicas e culturais de Portugal, Itália e Vaticano. A exposição, que mostrará uma seleção de manuscritos e edições raras da Divina Comédia, foi inaugurada por uma extraordinária conferência do cardeal Tolentino de Mendonça intitulada "Todos somos chamados a construir visões. A Divina Comédia como pedagogia do olhar".

Amanhã na Fundação Gulbenkian confluirão os mais relevantes escritores e intelectuais contemporâneos, empenhados no colóquio internacional "Dante: um poeta do nosso tempo", comissariado entre outros pela professora Teresa Bartolomei, a que agradeço o empenho que tem dedicado à iniciativa. A programação dos Dias de Dante continua entre setembro e novembro com um ciclo de "Lições sobre Dante" proferidas por intelectuais de elevado prestígio, de entre os quais Alberto Manguel e Lina Bolzoni, que abordarão a relação entre poesia e memória em Dante, e eminentes italianistas como Rita Marnoto, Isabel Almeida e Jorge Vaz de Carvalho, que analisarão a receção de Dante em Portugal. E haverá ainda concertos, debates, projeções e instalações por todo o país, a celebrar a reinterpretação interdisciplinar de Dante e a sua inesgotável capacidade de inspirar a viagem da arte dentro e fora da alma humana.

Embaixador de Itália em Portugal

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