Um povo não se inventa
Ao fim de vários meses de discussão sobre quem presidiria ao exercício, o Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia e a Comissão Europeia chegaram finalmente a acordo sobre a estrutura da conferência sobre o futuro da Europa. Sobre o conteúdo já todos tinham mais ou menos acordado. O problema era o equilíbrio de poderes entre as três principais instituições europeias. Quem organizava o debate e decidia as conclusões.
A solução, desencantada pela presidência portuguesa e muito ao gosto de Bruxelas, foi ter uma tripla presidência e mais uma comissão executiva com sete representantes por instituição e mais uns quantos delegados dos comités económico e social e das regiões, de alguma forma acompanhados por representantes dos Parlamentos nacionais. A conferência ainda não começou e já é uma multidão a disputar poder. Só falta o povo. É isso que os conferencistas querem inventar. Ou fazer de conta que há.
Só uma entidade política que não tem um povo, mas gostava de ter, e que tem mais conflitos institucionais internos do que divisões ideológicas é que se lembraria de semelhante exercício. A organizações como as Nações Unidas ou a NATO (dois exemplos bem diferentes) não ocorreria semelhante reunião de pessoas e propósito. A Estados soberanos também não.
Em todos esses casos, a legitimidade da representação política - eleita ou delegada - é suficiente para legitimar os processos políticos e as decisões tomadas sobre o presente ou sobre o futuro. Na União Europeia também. O Parlamento Europeu é eleito diretamente pelos cidadãos de cada Estado-membro; o Conselho é composto pelos governos que resultam de 27 eleições democráticas (e a sua composição é dinâmica, porque todos os anos há várias eleições nacionais e outros tantos governos que mudam, ou não), e, finalmente, a Comissão é fruto do equilíbrio de poderes entre o resultado das eleições europeias e os partidos nos governos em funções à data dessas eleições.
Os decisores europeus, porém, querem mais, ao mesmo tempo que querem coisas contraditórias. Querem que o povo se entusiasme com a Europa e reforce a legitimidade de cada uma das instituições, sendo que o Parlamento quer mais poder e mais ideologia, a Comissão Europeia quer mais competências europeias e compromisso livre de ideologia e o Conselho quer mais Europa sem perder poder nacional e, sobretudo, sem se submeter a um e à outra.
Esta quadratura do círculo é a Europa que temos. Uma construção de Estados soberanos que abdicam de alguma soberania em troca de políticas que, feitas em larga escala, os beneficiam e aos cidadãos. E, considerando estas circunstâncias, necessariamente imperfeita e em permanente tensão. Mas não pode - pelo menos enquanto houver Estados soberanos e memória histórica - ser outra coisa.
Não há nada de mal na ideia de fazer conferências, debates e painéis sobre a Europa e sobre o futuro. Pelo contrário. Quanto mais se falar sobre Europa, quanto mais se perceber que a política europeia é continuação da política nacional e a política nacional é continuação da política europeia, melhor. O problema está em achar que assim se legitimará o que cada uma destas instituições quer que o futuro seja, e o poder que quer ter.
Os políticos europeus têm de perceber que têm de ser os primeiros a dizer que não há falta de democracia europeia nem falta de legitimidade para decidirem sobre o futuro. Podem querer discutir tudo isso em diferentes formatos, mas não podem fazer de conta que essa é que é a voz do povo. Os europeus já são legitimamente representados por governantes e parlamentares. O povo europeu não existe, e uma conferência não substitui as instituições democráticas nem faz um povo.
Consultor em assuntos europeus