Um português e o seu sonho em Málaga
Foi a poucos metros do mar, numa das zonas mais privilegiadas da cidade espanhola de Málaga, que João Magalhães realizou um sonho. Málaga, sol, calor..., é lugar de muitos. Mas o de João era especial: ter um museu. Um museu para mostrar as suas obras de arte. Obras de arte, sim, porque para este homem de sessenta e muitos anos, talvez 70 - ele recusa dizer a idade -, os automóveis antigos e os vestidos vintage que foi colecionando são peças de arte. E assim nasceu o Museu Automobilístico de Málaga.
Os carros começou a comprá-los por influência do pai, que também os colecionava. Mas ao contrário deste, que tinha paixão pelas corridas, João adquiriu-os por achá-los «um bom investimento». O fascínio pela moda «esteve sempre presente». A mãe era «uma senhora com muito bom gosto e dona de um guarda-roupa impecável» e o pai era proprietário de algumas fábricas de tecidos, onde João trabalhou durante muitos anos e introduziu novidades: «Só fazíamos tecidos lisos e tecidos tintos em fio, ou seja, aos quadrados e às riscas. Mas depois decidimos, por vontade minha, investir numa estamparia. Todos os anos fiz uma coleção nova de tecidos estampados. Foi um sucesso.» Um dia resolveu deixar as fábricas da família e seguir o seu caminho. «Montei uma confeção de gabardinas em Vila Nova de Famalicão e consegui um grande contrato em Paris com o Maurice Widerman, o maior industrial de confeção da Europa nos finais dos anos 1970.» Mais tarde, abriu as primeiras lojas Benetton em Portugal. Foi ter com Luciano Benetton a Treviso e de lá trouxe o master franchise da marca. Depois criou a Kookai, que também acabou por vender. E foi o que ganhou com esta venda que aplicou na compra dos primeiros automóveis do Museu Automobilístico de Málaga.
Desde que abriu, em 2010, este museu juntou-se à lista de razões por que vale a pena ir à cidade onde nasceram o pintor Pablo Picasso e o ator António Banderas. Málaga já não é só praia. Há o Museu Picasso, o Centro de Arte Contemporânea e o Festival de Cinema espanhol à cabeça. As peças de João Magalhães foram «muito bem acolhidas» pelo município de Málaga, que não só lhe cedeu o edifício, onde antes funcionava uma fábrica de tabaco, como assegura as despesas de manutenção, água e eletricidade. «Foi uma coincidência feliz, porque a câmara tinha acabado de comprar este complexo e andava à procura de conteúdos interessantes para o encher. Foi na hora certa.»
Para João, é uma troca de benefícios justa. «É vantajoso para a cidade, porque recebe turistas de muitos países. E para mim é ótimo, já que é das receitas geradas pelo museu que hoje em dia vivo.» Da venda de bilhetes, realização de eventos e jantares e também do aluguer de carros e de roupas para festas temáticas. Quando o FC Porto jogou com o Málaga, esteve agendado um jantar com as duas direções, na noite anterior ao jogo. O jantar de beneficência da Gala Starlight, patrocinado por António Banderas e cujas receitas são entregues a várias instituições internacionais que trabalham para a melhoria das condições de vida de crianças desfavorecidas, foi no museu.
Anos antes de transportar os seus tesouros para Málaga, João Magalhães tentou que ficassem em Portugal. Mas o país, queixa-se, fechou-lhe as portas: «Ninguém quis saber disto para nada. Há 15 anos, tentei instalar-me em Famalicão, num terreno bem situado, perto de tudo: a 25 quilómetros do Porto, de Braga e de Guimarães e a cem quilómetros de Vigo.» Mas no terreno «só se podia construir para fins industriais» e «um museu não é uma indústria». Foi esse, de resto, o argumento utilizado na altura pela CCRN (hoje CCDRN, Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional Norte) para recusar o projeto. Virou-se para Madrid, onde, garante, o seu projeto foi recebido de braços abertos. «O Ministério da Cultura espanhol percebeu logo as vantagens que um espólio destes poderia trazer a qualquer cidade espanhola e perguntou-me em qual eu gostaria de ter o museu. Eu só pedi que fosse uma cidade pequena, porque numa grande poderia passar despercebido. Entre as que receberam a proposta, Málaga foi a primeira a dizer que sim. E cá estou. Já lá vão três anos.»
Nessa altura, ainda não tinha a coleção de moda que inaugurou em março. Tinha oitenta automóveis. Hoje tem 96. Uns herdou do pai, outros foi comprando «aos poucos», em vários países. «Compro em leilões, pelo telefone e, mais recentemente, pela internet. Se acho que é um bom investimento, nem espero para ver a fotografia do carro. Compro. Fecho o negócio.» A maior parte chegou-lhe às mãos «num estado lastimável», mas isso, garante João, torna o negócio mais apetecível: «Se estivessem em bom estado, nunca os poderia comprar aos preços que compro. Nove, dez mil euros. Baratíssimos».
Os arranjos e as adaptações, que exigem a arte de vários especialistas, desde mecânicos a pintores, são feitos em Famalicão, onde vive desde o 25 de Abril de 1974, embora nos últimos três anos acabe por passar mais tempo em Málaga. «Tudo isto é transformado em obras de arte em Famalicão, porque é uma cidade com uma grande tradição no restauro de automóveis antigos. Muitos colecionadores vão lá por causa disso, andam à cata de preciosidades». A preciosidade mais antiga de João é um Horseless de 1898 e não podia faltar neste espólio, uma vez que «representa a transição entre a carruagem puxada por cavalos e o automóvel».
Visitar esta exposição de carros é viajar no tempo. Há marcas e os modelos que definiram épocas, passadas e futuras - desde o Horseless aos protótipos que se movem a energias alternativas como o sol e o vento. É um museu completo. Quem quiser conhecer a história do automóvel, é aqui que deve vir. Aliás, deve ser por isso que a princesa Maria Luísa, da Prússia, e o marido, o conde Rodolfo de Schönburg-Glauchau, apareceram aqui há uns dias para fazer um pedido especial ao colecionador português: «Eles vão fazer no Marbella Clube uma festa temática dedicada ao Grande Gatsby . E querem decorar o cenário com elementos da época (anos 1920), como malas e carros. Empresto com muito gosto e orgulho, porque a princesa Maria Luísa é uma amiga desta casa. Vem cá muitas vezes.» Na volta pelo museu, João aponta: «É este que a princesa escolheu para a festa. É majestoso não é? Um igualzinho está exposto no Victoria and Albert Museum, em Londres.»
A cada automóvel, uma história está associada. João gosta de contar particularmente a do Peugeot Eclipse que «os antigos proprietários enterraram durante a Segunda Guerra Mundial para que os nazis não o roubassem». Mas de todos os 96 carros há um especial. Um Ferrari de 1956 comprado no Porto pouco depois do 25 de Abril: «Foi o primeiro. Custou-me nove mil dólares. Não é que goste muito de Ferraris, mas achei que era um bom investimento.» E pelos vistos não se enganou, pois já foi assediado várias vezes: «Ainda há pouco tempo ofereceram-me 850 mil dólares por ele. Mas eu não o vendo por dinheiro nenhum no mundo.»
E os vestidos? São sessenta, expostos numa das salas do museu. João tem mais, à volta de cem, mas por falta de espaço guarda os restantes em armários. De Balenciaga a Schiaparelli, a coleção abrange um período da década de 1920 à de 1980. Há Chanel, Dior, Balmain, Ungaro, Yves Saint Laurent, Serge Lepage, Loris Azzaro, Mugler, Feraud, Lanvin, Patou, Fath, Oleg Cassini, e Mariano Fortuny e John Galliano. Vestidos e conjuntos de saia ou calça e casaco iguais aos que foram usados por mulheres célebres, famosas como Mata Hari, Peggy Guggenheim, Sara Bernhardt, Isadora Duncan, Greta Garbo, Wallis Simpson, Eva Perón, Rita Hayworth, Ava Gardner, Marlene Dietrich, Marilyn Monroe, Dalida, Audrey Hepbrun, Romy Schneider, Elizabeth Taylor...
Numa sala contígua, mais de trezentos chapéus antigos originais. Aliás, foram os chapéus que levaram João a colecionar vestidos vintage . Um vício que alimenta pelo menos uma vez por mês em Paris. «Vou aos antiquários de moda vintage . Percorro-os todos, a pé. Nem paro para comer. O da Madame Françoise Auguet, em Saint Germain, é para mim obrigatório. Foi lá que encontrei um dos meus vestidos mais importantes: o Delphos , de Mariano Fortuny. Simboliza a libertação da mulher do espartilho. Naquele tempo, as mulheres avançadas como a Peggy Guggenheim, a Mata Hari ou a Isadora Duncan, amigas de Fortuny, começaram a usar o Delphos , um vestido mais confortável.» Embora não tenha sido o primeiro que adquiriu, o Delphos é o mais antigo da coleção de moda vintage . Já o favorito, diz João, «é sempre o próximo». Há semanas que anda de olho em dois vestidos que viu em Paris, um de Balenciaga e outro de Nina Ricci: «São esplendorosos, de uma beleza estonteante. Espero poder comprá-los. Custam quatro mil euros cada».
Apesar de fascinado pelo passado, João está mais interessado em falar do futuro, das ideias que fervilham na sua cabeça para tornar o «seu» museu num dos mais importantes do mundo. «A maior parte deles o que têm? Pintura e escultura. Museus de moda e design associados à arte contam-se pelos dedos. E o meu, tenho orgulho nisso, é um deles. E não há nenhum museu do mundo onde se fazem casamentos entre gays e lésbicas, mas o meu vai estar aberto a essas celebrações. Este é um espaço muito eclético e quero que prime pela originalidade». João planeia fazer estas celebrações na sala onde guarda os troféus que o pai ganhou nas corridas de carros em que participou. «Vai ser aqui. Terá uma capela e a decoração vai remeter para um ambiente de festa como a das casas de casamentos em Las Vegas.»
Outra ideia: ter um museu do Automóvel em Xangai, para ele «a cidade do futuro», o «melhor Museu Automóvel, de Moda e de Design de todos os tempos». «As pessoas estão cansadas de pintura e de arte contemporânea que ninguém entende. A retrospetiva de moda é o que atrai mais público aos grandes museus, atualmente. O Victoria and Albert Museum, em Londres, tem exposições de moda permanentes. A Dior esteve no Museo Pushkin, em Moscovo. Pierre Cardin expôs num museu em São Paulo, no Brasil. Giorgio Armani esteve no Guggenheim de Bilbau, em Espanha. Alexander McQueen, no Metropolitan Museum de Nova Iorque... A moda é arte. É um mundo a descobrir e é mais interessante do que à partida se pode imaginar.»