Um poema em filme sobre a madrinha do 'punk'

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"Quando me perguntam como é ser um ícone rock'n'roll sinto que me estão a pôr no Mount Rushmore." Quem o afirma é Patti Smith, a dada altura, durante um documentário centrado na sua vida, obra e figura que, estreado este ano em Sundance, se apresenta agora como uma das mais fortes propostas do IndieMusic, secção não competitiva do festival IndieLieboa. Patti Smith: Dream of Life passa hoje, pelas 21.30 no Teatro Maria Matos, em programa que conta ainda com a curta-metragem Smells like Teen Spirit, de Jem Cohen.

Entre a vontade de narrar uma história de vida e obra e o que poderíamos comparar ao sentido de liberdade formal da poesia, Patti Smith: Dream of Life tem como base de trabalho uma selecção de sequências de 12 anos de imagens captadas que o fotógrafo Steven Sebring colheu junto da cantora. Cenas vividas sobre o palco, por vezes nos bastidores, nos hotéis, em trânsito, e também em família... Neste constante diálogo entre o espaço público e o privado revelam-se as marcas de um espírito directo, simples, mas profundo de sentidos. Na verdade assim o esperávamos, já que em nada a genuína pessoa privada se afasta daquela que podemos escutar na sua música e ler a sua poesia.

A memória é neste documentário um mundo de vivências e acontecimentos que explicam o presente. Não se trata de uma soma de recordações convocadas pela nostalgia. Essa relação com o passado, como etapa vivida e não montra de saudade, resiste mesmo nos momentos em que se evocam noites no recentemente encerrado clube nova-iorquino CBGB (onde a aventura musical da cantora ganhou asas) ou dias passados ao lado de velhos amigos como Allen Ginsberg, William Burroughs ou o fotógrafo Robert Mappelthorpe, este último responsável pela fotografia da capa do primeiro álbum da cantora, hoje uma referência incontornável da iconografia rock'n'roll.

O filme ultrapassa em muito a lógica televisiva habitual em muitos documentários sobre música. Há, de resto, um cuidado na construção de ideias visuais que acrescentam outros sentidos às experiências narradas. Um deles, que lembra o efeito do um refrão numa canção, usa imagens de uma recorrente passagem por um quarto branco no qual, vestida a negro e máquina fotográfica nas mãos, Patti Smith junta uma série de objectos (que vai fotografando), cada qual levando-o a lembrar as pessoas e histórias a eles associadas. Com uma outra câmara de vídeo, Patti Smith capta imagens que servem de cenário a palavras suas. Aqui, interferindo directamente a artista e obra no documento. Ou seja, cruzando o discurso artístico com a narrativa a ele dedicada.

Ao longo de todo o filme encontramos reflexões sobre a ideia da morte, encarada não apenas como uma relação de perda, mas antes como representando um espaço de memórias que ficam entre os vivos. Patti Smith evoca o marido (o músico Fred Sonic Smith, elemento dos míticos MC5), o irmão, William Burroughs, Hilly Krystal (fundador e dono do já citado CBGB), Mapplet- horpe... E visita os túmulos de alguns dos desaparecidos que mais a inspiraram, de Arthur Rimbaud a William Blake.

A música, sem surpresa, tem enorme protagonismo neste filme. Através das memórias contadas compreendemos contudo que esse foi destino algo inesperado para Patti Smith. A poesia, antes das canções, parecia ser a estrada que a obra artística iria essencialmente percorrer.

Pelo ecrã passam ainda figuras como Flea (dos Red Hot Chilli Peppers), Michael Stipe (dos R.E.M.) ou Philip Glass. Vozes que aqui se juntam para celebrar uma figura de excepção.|

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