Um pintor no cinema

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Paula Rego retorquia que não precisava de nenhum assistente, mas convidava aquele miúdo de 14 anos que lhe escrevera uma carta a fazer aquela proposta a visitá-la no seu atelier. E Gabriel Abrantes, que então pintava a pastel num estilo assumidamente próximo de Paula Rego e de Lucien Freud, foi até Londres e a pintora, "supersimpática", andou a mostrar-lhe museus e galerias - e talvez não saiba que aquele sobrinho-neto do pintor João Vieira é, actualmente, um dos mais interessantes novos criadores portugueses, ao ponto de o crítico Alexandre Pomar ter exclamado, depois de ver a sua primeira exposição na Galeria 111, em 2006: "Não me lembro de uma aparição tão fulgurante." Naqueles dias londrinos, "Paula Rego chamou-me sempre Daniel", recorda Gabriel Abrantes.

O pintor-cineasta, que nasceu em Chapel Hill (Carolina do Norte, EUA), em 1984, onde o pai estava a fazer o doutoramento em Medicina, até aos sete anos ainda viveu em Portugal e na Bélgica, antes de a família se fixar em Bethesda, nos Estados Unidos. Aos quatro ou cinco anos, em grande cumplicidade, Gabriel sentava-se a pintar ao lado do pai, um amador que cultivava, em espátula sobre tela, um registo entre o figurativo e o abstracto. Entretanto, passou-se o tempo do liceu, em que conciliava o percurso académico normal e as aulas de pintura particulares com o mesmo professor da escola pública; e o da Universidade em Nova Iorque (curso de Fine Arts and Cinema, na Cooper Union for the Advancement of Science and Art), onde, além de cada aluno ser obrigado a reflectir e a explicar o trabalho perante colegas e professores, todos aqueles jovens, já demasiado convencidos de que seriam geniais, eram obrigados a trabalhar noutros suportes, a dominarem as técnicas mais básicas - e Gabriel fez escultura, gravura, fotografia, vídeo, cinema, o que lhe permitiria trabalhar, como o faz ainda hoje, em diversas plataformas. Expôs nas galerias nova- -iorquinas Houghton, Gudelsky e Fusebox antes de viajar até Paris, onde fez um mestrado em arte contemporânea e cinema no Le Fresnoy, Studio Nacional des Arts Contemporains.

Aos 22 anos, o jovem que cresceu entre duas culturas - isto é, a admirar em simultâneo o futebolista do Benfica João Vieira Pinto e o basquetebolista dos Chicago Bulls Michael Jordan - resolveu ir para Trás-os-Montes, onde passava o Verão durante a infância, para ali fazer "um filme épico num sítio inesperado", "uma longa metragem em película rodada com poucos meios". Cruzou a influência do cineasta alemão Werner Herzog, que realizou Fitzcarraldo na Amazónia, e o universo das recolhas etnográficas de Leite de Vasconcelos, em que surgiam histórias "meio malucas", como Um Bacalhau Julgado pelo Seu Crime em 1900.

Dono de uma cultura invulgar (cita Fernando Pessoa de memória, conhece o cinema de Dreyer e de Fassbin- der, diz que o livro Utopia de Tomás More é "ficção científica"), inspirou-se nas experiências de Pasolini e procurou trabalhar com não actores neste filme sobre uma cheia ameaçadora, um autêntico dilúvio, que varre uma aldeia transmontana e que tem o título Grande Abraço. Mas, além de nunca ter chovido enquanto a equipa lá estava a trabalhar, a certa altura o não actor que era a principal personagem, e que estava a construir um grande barco em cima de um telhado, roubou o alambique da casa da avó de Gabriel Abrantes e nunca mais ninguém o viu - e o filme, assim encalhado, continua ainda à espera de ser concluído.

Depois, as duas curta-metragens filmadas em 16 mm e concebidas para serem projectadas em galerias valeram-lhe o reconhecimento este ano: Visionary Iraq triunfou no Festival Indie Lisboa e a instalação que integrava Too Many Daddies, Mommies and Babies conquistou o Prémio EDP - Jovens Artistas 2009. O primeiro projecto é "uma hiper-ficção surreal e cínica", em que se conta a história de um teenager português e da sua irmã adoptiva angolana que têm a uma relação de pseudo-incesto e se alistam numa operação de libertação do Iraque, acabando por descobrir que o seu pai anda a lucrar com a reconstrução daquele país devastado pela guerra. No segundo projecto, em que se misturam a homossexualidade, as barrigas de aluguer e o aquecimento global, como sublinhou o júri do Prémio EDP, Ga- briel Abrantes revela uma "capacidade de criação de universos narrativos nos quais, através do uso de uma multiplicidade de linguagens contemporâneas, se cruzam visões sarcásticas da cultura, da política e do quotidiano".

Depois disso, aproveitando o desafio lançado da ZDB - Galeria Zé dos Bois aos seus criadores para produzirem obras em países menos desenvolvidos, Gabriel Abrantes partiu para o Brasil e, entre Brasília e a Amazónia, rodou Cookie, um filme de baixo orçamento sobre dois putos ricos e estúpidos que saem daquela cidade que foi construída como uma grande utopia arquitectónica modernista para irem até à floresta cerrada em busca de raparigas limpas e puras. A experiência seguinte, concretizada já em De- zembro, foi fazer, com o mesmo conceito, o filme Liberdade em Angola - o país natal da sua mãe. Ao contrário das experiências anteriores, estas duas obras não foram feitas para serem exibidas num cenário criado em galerias, mas para fazerem o circuito dos festivais de cinema.

E, neste momento, o artista das múltiplas linguagens, que até já se apresentou com o projecto One Man Band, em que mistura a sua faceta diletante de performer e de músico que toca guitarra, piano e bateria, no Maxime (o cabaré lisboeta que é dirigido pelo músico e pintor Manuel João Vieira, primo direito do seu pai), além de ir preparar uma exposição de pintura ou escultura para a Galeria 111, agendada para Setembro, e de sonhar com a possibilidade de rodar um filme na China como fez no Brasil e em Angola, ainda não sabe se o seu futuro passará por se fixar num centro artístico como Nova Iorque ou se optará antes por ser um criador a partir de locais excêntricos como Trás-os-Montes ou a Amazónia. Mas, qualquer que seja a sua opção, Paula Rego rapidamente descobrirá que aquele "Daniel" que recebeu no seu atelier se chama, afinal, Gabriel Abrantes.

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