"Um peixe não constrói edifícios, mas as suas características biológicas geram arquitetura"

A frase que ilustra o presente título serviu de ponto de partida à hipótese formulada por dois arquitetos, André Tavares, da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, e Diego Inglez de Souza, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Uma hipótese vertida em livro. Ponto de partida para uma conversa a três vozes.
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Os arquitetos André Tavares e Diego Inglez de Souza lançaram-se na escrita a quatro mãos do livro Arquitetura do Bacalhau (Dafne Editora), obra que olha para a costa portuguesa para aí compreender as relações dinâmicas entre a construção em terra, as características intrínsecas a diferentes espécies marinhas e os processos predatórios que, "a partir de certa escala, constroem arquitetura e paisagem", como lemos na introdução à obra. Para o efeito, os autores detêm-se nos séculos XIX e XX, período em que a industrialização das pescas impulsionou grandes transformações em terra e no mar. No território português, André Tavares e Diego de Souza, escrutinam as construções associados ao bacalhau, à sardinha, ao atum, entre outras espécies. "A arquitetura tem uma história cruzada com o mundo dos animais, as dinâmicas dos oceanos e a biologia", escrevem os autores a abrir um livro que também se detém na forma como as transformações associadas à captura, processamento e distribuição aumentaram a pressão ecológica sobre o mar.

Uma primeira leitura do título do vosso livro pode deixar no leitor a pergunta: Porquê arquitetura do bacalhau? Como bem dizem no prólogo à obra "é óbvio que um peixe não constrói edifícios. Mas as suas características biológicas geram arquitetura". Que princípio norteia o vosso livro?

André Tavares (AT) - O trabalho começou com um olhar sobre uma paisagem que conhecemos, a das secas do bacalhau em Portugal, em locais como Ílhavo, Alcochete, Barreiro ou o Porto e, aí, percebermos quais as parecenças e diferenças com outras estruturas para o mesmo efeito, em particular na Terra Nova, Noruega ou Estados Unidos. Quando enunciámos esse programa de trabalho começámos a perceber que era um assunto bem mais profundo e que envolvia não apenas as diferenças entre aquilo que era construído, mas também o modo como era pescado. Para entender como era pescado, era necessário entender os ecossistemas, como age o peixe na Biologia e no seu meio ambiente. E quando começámos a perceber isso entendemos que o colapso de algumas construções em terra e ruínas que víamos eram explicadas por via do colapso dos ecossistemas que essas arquiteturas estavam a explorar. Percebemos que era possível imaginar e conceber uma história da arquitetura que não é feita a partir da terra, de uma história mais convencional, mas antes a partir da ecologia, dos ecossistemas e a transformação dos ambientes terrestres em função dos ambientes marinhos. O projeto construiu-se a partir desse pressuposto, o de entendermos o que construímos não apenas em função da ação humana, mas do meio ambiente e dos ecossistemas.

Diego Inglez de Souza (DIS) - A investigação parte muito da inquietação de perceber o que são essas paisagens que surgem no litoral, próximas das cidades. Quando vamos à praia vemos essas estruturas e questionamo-nos o que serão. Por que é que a paisagem do bacalhau é tão diferente daquela outra da sardinha? Na sua essência, são arquiteturas diferentes porque processam peixes diferentes, com características biológicas muito diferentes e que provêm de geografias díspares.

O que nos dizem é que a biologia marinha condiciona a transformação dos ecossistemas em terra e vice-versa. Querem pormenorizar?

(DIS) - Sim. O exemplo da Foz do Douro é eloquente. Se formos para o sul encontramos praias com esteiras para secar o peixe. Este vinha de longe, era salgado e assim se conservava por muito tempo. Noutros locais da costa há portos onde se processava a sardinha, que é um peixe que se deteriora muito depressa devido à gordura. A quantidade de gordura na carne do peixe condiciona as arquiteturas. Um peixe muito musculado aguenta bem até ser processado ou, depois de salgado, pode ser seco. Já o peixe rico em gordura tem de "entrar" na lata assim que sai do mar. Daí as fábricas de conserva estarem muito perto da praia.

Dois exemplos paradigmáticos são os do bacalhau e o da sardinha. Ao olharmos para a construção em terra percebemos qual o comportamento dos animais no mar...

(AT) - A sardinha é um peixe que come plâncton, está na base da cadeia alimentar, enquanto o bacalhau é um peixe carnívoro que come outros peixes. A sardinha vive na coluna de água e o bacalhau no fundo. Dessas diferenças fisiológicas decorrem diferenças entre a arquitetura das secas dissociadas do ecossistema longínquo, onde o peixe é pescado, e a arquitetura das fábricas de conserva que vivia da velocidade entre a captura do peixe e o processamento em lata.

(DIS) - No caso da sardinha e do bacalhau isso é evidente. Dado serem espécies muito ligadas à economia portuguesa, é fácil começar o estudo a partir desse ponto e relacionar o ambiente construído com as características do peixe. Há, contudo, outras camadas de complexidade, mais difíceis de apreender, pois conduzem-nos a outras espécies e a geografias diversas. Por exemplo, o atum é diferente. É pelágico, tal como a sardinha, também vive em cardumes, mas menores e, por conta de ser um animal pesado, pode alimentar uma comunidade a partir de um único exemplar.

O vosso livro detém-se na questão da sobrepesca, da exploração dos recursos marinhos. Desta forma, temporalmente, qual é o período que abarca a vossa obra?

(AT) - Há momentos de transição muito fortes e que correspondem a transformações tecnológicas, quer na captura, quer na transformação e processamento e nas redes de distribuição. Olhamos para esses processos sobretudo a partir de meados do século XIX, com o início da industrialização e a invenção da lata de conserva. A partir dos Anos de 1830/1840 dá-se a introdução dos caminhos de ferro em Inglaterra e a transformação das redes de consumo. A partir dos Anos 1880 assistimos à introdução do gelo, da pesca de arrasto e dos barcos a motor. A partir de 1910 ocorre a introdução do frio e da congelação. Com cada uma destas inovações tecnológicas aparecem novas formas de arquitetura, novas paisagens construídas. O nosso tempo é o da industrialização dos meados do século XIX a meados do século XX.

Porque os ciclos de transformação são mais acelerados?

(AT) - Sem dúvida.

(DIS) - É difícil estabelecer um marco preciso, não só porque são diferentes as espécies, mas porque a necessidade de estabelecer um marco preciso é humana, o tempo dos peixes é outro. Percebemos que todos os capítulos do livro iam até aos Anos de 1960, um momento-chave quando o humano desequilibra essas cadeias biológicas. A história da arquitetura tradicional olha muito para a biografia dos arquitetos. O que procurámos foi deslocar o protagonismo para outros seres vivos que também influenciam a arquitetura.

No fundo, num tempo em que vivemos arredados dos processos industriais e da arquitetura que os serve também nos estão a aproximar dessas paisagens construídas...

(AT) - Talvez sim, talvez não. Estou de acordo e é uma forma de se ler o livro. Creio que como investigadores e arquitetos o que nos interessa não é tanto o património e a relação afetiva com os lugares, mas a compreensão dos processos de transformação. Perceber como é que produzimos paisagem. E, nesse sentido, é perceber esse progressivo distanciamento, mais do que estabelecer uma relação afetiva com esses lugares. Um dos objetivos é também o de perceber qual a posição da arquitetura na produção da paisagem. Estamos convictos de que as paisagens que estamos hoje a construir são acidentes. Não no sentido de correrem mal, provocarem maiores assimetrias sociais, desestruturarem ainda mais a sociedade, mas sim por corresponderem a visões muito específicas de como se constrói. Dou alguns exemplos: um advogado que desenha um instrumento de planeamento, um político que determina uma orientação de investimento. Nenhuma dessas visões setoriais percebe o que está a fazer. A posição dos arquitetos na discussão da cidade e na discussão da transformação da paisagem é cada vez menor e menorizada por outras "dimensões urgentes" como agora gosta de se dizer. Creio que esta história pretende também demonstrar como a arquitetura está escondida em coisas fundamentais, onde parece que não existe arquitetura. A maior parte das reações que temos é a de nos dizerem que são estruturas que não foram desenhadas por arquitetos e, logo, não reconhecidas como arquitetura. Não são reconhecidas porque a arquitetura está muito acantonada na estrela de cinema. O papel que a arquitetura pode ter na sociedade é bastante mais amplo do que isso.

(DIS) - Regressando aos Anos de 1960, porque são de crise para todas essas espécies, com a introdução da congelação, com as capturas a longa distância, tornam-se muito evidentes os sintomas da sobrepesca. Interessa menos olhar para o património, por exemplo, na conversão de antigas fábricas de pescas em museus, mas antes olhar para a crise, para o colapso, compreendê-lo e saber como pode ser superado.

Inclusivamente relacionam o termo "bioeconomia" e o que lhe está subjacente, com a arquitetura da pesca. De que forma a impacta?

(AT) - É aí que entra, realmente, um outro olhar para a arquitetura. Creio que a questão principal é a do tempo. O facto de o tempo da arquitetura ser um tempo diferente do das espécies. À medida que vamos avançado e estudando os diferentes casos, assistimos a uma certa euforia económica, a sociedade a ser conduzida pela economia e a economia a conduzir aquele sistema para o colapso. A arquitetura vem atrás, vem monumentalizar o êxito económico e, como demora mais tempo, "chega tarde à festa". Quando o edifício está construído já o ecossistema está sobre-explorado, a rentabilidade não é a mesma e, mais do que celebrar, há motivos para chorar. Esse desfasamento do tempo é uma das coisas que a arquitetura revela.

Não estaremos, nesse sentido, a criar uma arquitetura perpetuamente inútil?

(AT) - Toda a arquitetura é inútil. As pirâmides do Egito são inúteis. O século XX ensinou-nos de uma forma muito radical que a eficiência é inútil e que a arquitetura que dura mais ao longo do tempo é aquela que não está vinculada a nenhuma função específica. Por exemplo, as casas que funcionam melhor hoje são as do século XIX e não as do século XXI. Porque essa obsessão social com a eficiência, a utilidade, o progresso, corresponde a circunstâncias e hoje vivemos de uma maneira diferente face há 20 anos e assim sucessivamente. O mesmo se aplica à arquitetura da pesca.

O que fazem com o vosso livro é uma história ecológica da arquitetura?

(AT) - Essa é a nossa ambição. Se queremos transformar a arquitetura temos de transformar a história. Porque se não tivermos um outro entendimento da história, estaremos a reproduzir os mesmos modelos de passado e não há dúvida de que temos de mudar a maneira como construímos e desenhamos. Digo isto não tanto em relação aos arquitetos, mas à sociedade em geral, onde os arquitetos se inscrevem. São os políticos os primeiros a terem de perceber que é preciso mudar a maneira como construímos.

Refere os políticos. No vosso livro abordam motivações políticas no caso do Estado Novo, com a sua visão patriótica e a construção de uma gastronomia nacional com base no bacalhau para glorificar um passado e escamotear a conversão tecnológica que não se fez...

(AT) - Na história do bacalhau assistimos à construção de mitos. E a sociedade gosta de mitos. Refere o Estado Novo, mas hoje ainda é pior. O turismo ainda é mais agressivo na construção dessas mitologias.

Quer exemplificar?

(AT) - Sim. Apresentar o bacalhau como sendo algo específico de Portugal é, em meu entender, absurdo. Mas, em simultâneo, é extremamente vendável do ponto de vista turístico. O mesmo se passa com as latas de sardinha, como se estas fossem uma invenção exclusivamente portuguesa. Obviamente que ajuda a vender latas de sardinha no aeroporto, mas cria uma perceção da nossa posição enquanto sociedade que é, essencialmente, ignorante e o turismo em geral vive dessa ignorância. Estamos a alimentar o turismo a partir da tradição. Mas é uma tradição com 50 anos e bastante duvidosa na forma como foi construída, se pensarmos nas pessoas que morreram e que foram violentadas de uma maneira absolutamente inadmissível. Foi assim que essa tradição de curta memória foi construída. Aflige-me ver como essa violência é celebrada com um fadinho de fundo.

No fundo vai ao encontro do que escrevem no vosso livro, o de "sintetizar uma leitura crítica capaz de ultrapassar um sem-número de lugares-comuns, equívocos e meias-verdades"...

(AT) - Sim. Dou um exemplo: Portugal nos Anos 1940 passou a produzir mais bacalhau salgado seco para consumo interno do que aquele que importava. É óbvio que assim se passou, basta recordar o que aconteceu na época, com a Segunda Guerra Mundial, quando deixou de haver comércio mundial. A Inglaterra e a Noruega, de onde importávamos bacalhau, deixaram de o vender a Portugal. Logo, a produção nacional passou a ser maior face à importação. O mesmo se passa nos Anos de 1960. Claro, os outros produtores deixaram de produzir bacalhau salgado seco para produzirem fresco congelado. É assim, através dessas frases bombásticas e slogans mediáticos que se constroem os mitos que ofuscam os fenómenos tal como estes aconteceram.

Por falar em ofuscar, referem a amnésia ecológica, ou seja, ultrapassamos sempre os limiares que achávamos aceitáveis para a conservação das espécies...

(AT) - Escutamos com frequência que "no tempo dos nossos avós é que era bom" [risos]. Há essa ideia de que a natureza é um processo dinâmico e de que os ecossistemas estão em constante mutação. Há uma certa tendência para a depredação e temos feito isso com grande velocidade e cada vez com maior eficiência. Neste sentido não estou a entender a eficiência como algo positivo. Os ecossistemas reorganizam-se, mas de uma maneira diferente daquela que conhecemos e, em geral, mais pobre, com menos espécies e com espécies mais agressivas.

Como é que dois arquitetos entraram tão a fundo nesta questão da biologia marinha?

(AT) - Foi divertido e gratificante. Divertido no sentido de que não é o "pão nosso de cada dia" [risos]. Há um trabalho de proximidade com biólogos, em particular com alguns biólogos marinhos da equipa do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental, nomeadamente a Elsa Froufe, o Filipe Castro e o Francisco Arenas, que nos deram apoio; do IPMA, nomeadamente a Mónica Felício e a Diana Feijó. É deste diálogo interdisciplinar que nasce a aprendizagem. Por outro lado, também é um processo difícil porque corresponde a linguagens e padrões de trabalho que são muito diferentes dos nossos. Daí a parceria, o diálogo, a correção.

Como está a ser recebido o livro entre pares de profissão?

(AT) - Há vários resultados e o principal é que o trabalho está a continuar. Recentemente, tivemos a alegria de receber a notícia de um prémio ibérico, o FAD [categoria "Pensamento e Crítica"]. Em simultâneo, também recebemos um financiamento do European Research Council para continuar a investigação. O projeto está a ganhar uma dimensão atlântica, com uma equipa internacional. Também há diálogos com colegas de outros contextos. Entretanto, será publicado em 2024 um livro em inglês, uma obra que é uma sequência desta.

Arquitectura do Bacalhau & Outras Espécies
André Tavares e Diogo Inglez de Souza
Dafne Editora
Novembro de 2022
292 páginas

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