Um Patrão que é mais mandado do que manda

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Em O Fatalista, interpreta uma personagem referida como o Patrão. Uma personagem sem nome. Como é que a definiria?

Acho que sou um refém. Daquela estranha personagem do século XVIII que aqui é o motorista ou o criado. E refém na medida em que sou arrastado para uma viagem que mais parece ser a viagem dos amores do criado, o Tiago. E arrastado para os jogos de poder e de humilhação e disputa entre os dois, nos quais o Patrão é sempre ultrapassado e humilhado. Eles parecem mais uma única personagem dividida em duas, com duas caras, do que duas personagens distintas, e procuram trocar de lugar constantemente, numa espécie de contrato social feito entre ambos, mas sempre adiado.

Aliás, este Patrão é mais mandado do que manda.

Sim, funcionando mais como um sonâmbulo - um autómato, como escreve Diderot - que é levado, por um lado, por uma torrente imensa de reflexão constante, peripatética, do Tiago, e por outro, pela torrente imensa de episódios bizarros e burlescos de um país que não se revela, que se escapa, esboroa e desacredita, do qual só encontramos situações ou personagens que são ruínas, ou arquétipos desidentificados. O país desapareceu, já não é possível retratá-lo realisticamente, só com metáforas. Há uma crise de identidade nas personagens principais, e há uma crise de identidade global. As histórias nunca acabam, e as personagens nunca acabam por contar as suas histórias. O João Botelho levou isso às últimas consequências.

Ele deu-vos instruções muito específicas de interpretação a si e ao Rogério Samora, que faz de Tiago, ou deu-vos liberdade para o surpreenderem?

O realizador dá sempre instruções, na medida em que confessa os seus sentimentos em relação ao filme, e ao mesmo tempo deixa a liberdade de ser surpreendido. As surpresas vão-se sucedendo não só durante a rodagem, como também no desejo de que os actores acrescentem qualquer coisa de mais a essas instruções. O João sabe muito bem o que quer, e deixa ao mesmo tempo que os actores queiram. E trabalhar com um actor tão extraordinário como o Rogério Samora é um valor acrescentado.

O João Botelho, quer no texto que escreveu sobre o filme, quer quando o apresentou no Festival de Veneza, insistiu na actualidade do livro do Diderot. Concorda com ele?

É um texto fundador da modernidade, como ele diz, e tem toda a razão, sobretudo quando o lê pelos olhos de Brecht. Não posso deixar de reencontrar o Diderot nesse também tão moderno livro, fundador da nossa modernidade ficcional, Viagens na Minha Terra. Estava a reler o Diderot quando me preparava para o filme, e estava sempre a ouvir o Garrett, uns 60 ou 70 anos depois. A modernidade desse texto é apaixonante, e depois o João transforma-a muito liberrimamente, enfim, faz o seu programa surreal, ou marxizante, se quisermos. É um desafio muito forte e difícil.

Trabalha com o João Botelho desde o seu primeiro filme, Conversa Acabada, e entrou em vários outros títulos dele. A vossa relação já não é só profissional, é de amizade.

Sim, de amizade. Estreei-me como actor de cinema com ele, e agora, no Fatalista, curiosamente, divido um papel. O João tem muito a obsessão das parelhas, do protagonista que são dois. O Fatalista é como que uma reedição da Conversa Acabada, só que desta vez não são dois poetas que queriam ser um, mas um dividido por dois, o Patrão e o motorista. É óptimo quando podemos ter relações de amizade enriquecidas pelas relações profissionais, e vice-versa. É muito compensador e estimulante, quer quando nos encontramos para tomar um café, quer quando nos encontramos para filmar.

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