Episódio 27. Um pastel de Belém em prol da Europa
Londres, 24 de agosto, 15.00 Santos Silva organizara a task force para a nova causa de Portugal: ajudar os britânicos a descalçar a bota - apertada e furada - do brexit. A operação baseava-se numa impressão: talvez, só talvez, o governo britânico gostasse que Portugal lhe desse uma mãozinha para a inversão do referendo...
As Necessidades tiveram um recente sucesso, a eleição de Guterres para secretário-geral da ONU. Havia outro e ainda mais recente, a vinda da sede da ONU para Lisboa, a maior vitória diplomática portuguesa desde o Tratado de Tordesilhas. Mas, em abono da verdade, este último ficou a dever-se mais à tolice de Trump ao ocupar o Palácio de Vidro e à imagem de virado para o mundo que Portugal granjeara ao longo de séculos.
A task force fez uma lista de potenciais influenciadores portugueses com crédito em britânicos-chave. À cabeça, Paulo Portas e Francisco Louçã, porque relacionados com dois dos maiores opositores ao regresso do UK à UE: o ministro conservador Boris Johnson e o líder do partido Trabalhista Jeremy Corbyn. O terceiro da lista era o banqueiro Horta Osório, que seria convidado a contactar quem ele bem entendesse, se é que entendia que a permanência no mercado único favorecia o seu banco Lloyds.
António Costa ofereceu-se para avocar Portas. Telefonou-lhe e propôs um encontro "como da última vez". Dois anos antes, nas vésperas das legislativas, ele viram-se clandestinamente na sede do PS. Portas viera pela capela do Rato, passara por uma porta secreta e entrara no jardim do palácio que é a sede nacional do PSD. O que discutiram então foi gorado pelo resultado das eleições que levaram um para São Bento e outro para negócios internacionais. Os negócios, dizia-se, estavam a correr bem, mas Costa sabia que Portas tinha saudades da política.
Confirmou-se. E Portas foi a Londres falar com Boris Johnson. Durante a campanha do referendo, com o seu falar saboroso, Boris dissera que o brexit seria como "comer um bolo e continuar a tê-lo" - sair da UE e continuar com as regalias... Eles já se conheciam de uma reunião de promissores políticos da direita europeia organizada em Washington pelo vice-presidente Dick Cheney. Em ambos, a ambição política e gosto do jornalismo e o mesmo culto por Winston Churchill. O ex-diretor de O Independente e o então diretor do The Spectator tornaram-se amigos, o suficiente para o português bater à porta do Foreign Office e ser logo recebido pelo ministro.
Quando ia a Londres, Paulo Portas costumava levar uma dúzia de pastéis de nata que o amigo muito apreciava. Dessa vez, caprichara, levou um pastel de Belém num cestinho de porcelana Vista Alegre. "Os negócios fizeram-te rico, amigo!", exclamou Boris Johnson, atirando-se à guloseima. O outro não negou: "Os negócios dão-me é tempo para ler, estou a tornar-me especialista de Shakespeare..." Boris arregalou os olhos de interesse, mas nada podia dizer, tinha a boca cheia.
"Ah, Shakespeare, 37 peças de teatro, 154 sonetos, enfim, 884 647 palavras!...", disse Portas, atirando-se para o cadeirão de couro vermelho. "884 647 palavras, é obra...", repetiu, com Boris já um pouco inquieto. "E sabes quantas vezes o Bardo escreveu a palavra irrevogável? Digo esta, porque é o balanço da minha carreira política. Em Portugal, fiquei o tipo do irrevogável." E contou o episódio da sua demissão fracassada no verão de 2013.
Voltou a Shakespeare: "Ele escreveu uma, uma só vez, irrevogável: firm and irrevocable is my doom...", declamou Portas, imaginando-se Laurence Olivier. "Primeiro ato, cena 3, da peça As You Like It...", lembrou. Eram palavras do duque Frederico, o usurpador, que banira, irrevogavelmente, a sobrinha Rosalinda. Mas, no último ato, o duque Frederico deixa a sobrinha regressar e entrega o ducado ao legítimo dono... "Irrevogável, fatal palavra! Na política nunca te agarres ao definitivo, Boris."
O ministro olhava o português, de boca aberta. "Queres mais um pastel de Belém?", perguntou Portas. O segundo mais esquisito penteado louro da cena mundial disse que sim. Cruel, Paulo Portas negou-lho: "Já comeste o pastel de Belém, não podes continuar a tê-lo." O ministro do Foreign Office e da Commonwealth levantou-se de olhos marejados e abraçou o amigo: "Vais ajudar-me a voltar atrás, não vais, Paulo?" O enviado português também estava comovido: "Nada é irregressível, Boris, claro que vou ajudar-te."
O ministro levou o amigo até à Grand Staircase. Quando Portas se voltou, Boris Johnson ainda lá estava no alto da escadaria. Fez-lhe adeus e, num friso, leu escrito na pedra a Britannia que acabara talvez de salvar: "Senhora dos mares, ela enviou os seus filhos para os mares distantes." Ao chegar ao passeio da Whitehall, Paulo Portas encheu o peito: "Será que o velho Winston me daria um abraço?"
Continua amanhã. Acompanhe aqui os episódios do Folhetim de Verão