"Um país que não tenha jovens e trabalhadores com uma Saúde Mental razoável não tem grande futuro"

Dois anos após os primeiros casos de covid-19 em Portugal e de a OMS decretar a pandemia, o diretor da Coordenação Nacional para as Políticas de Saúde Mental, Miguel Xavier, fala sobre o que se aprendeu e da reforma que o país precisa nesta área. Mas para que esta aconteça, a Saúde Mental tem de ser uma prioridade política, na agenda, no investimento e na luta contra o estigma.
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Portugal é dos países que quase não tem restrições contra a covid-19. Isto quer dizer que está na hora de se deixar de pensar em pandemia e começar a olhar para outras áreas, como a Saúde Mental (SM)?

Apesar de estarmos confiantes e de a situação estar bastante melhor do que já esteve, a pandemia ainda não acabou. E, neste sentido, penso que há três aspetos com os quais temos de nos preocupar. O primeiro é o impacto em termos de sofrimento psicológico diretamente relacionado com a pandemia. Esta foi uma preocupação nossa desde o início da pandemia e que se mantém, embora agora com menor dimensão. Em segundo, temos de nos preocupar com o longo covid, a situação que corresponde à persistência de sintomas - como cansaço, dificuldade respiratória, falta de concentração, de memória, insónia - que sabemos hoje, através de literatura publicada, que pode afetar até 10% das pessoas que foram infetadas. Claro que neste ponto terá ainda de ser esclarecido se esta percentagem, que foi encontrada temporalmente para a variante Delta, se irá manter com a variante Ómicron, ou se será eventualmente menor. Finalmente, o terceiro aspeto em termos de preocupação tem a ver com a covid-19 como fator determinante no aparecimento de doença mental.

Mas uma pessoa com covid-19 pode ter maior probabilidade de vir a desenvolver doença mental?

Há um estudo longitudinal feito nos Estados Unidos da América, divulgado na semana passada, que avaliou uma população de veteranos durante um ano e que mostra haver um risco acrescido, não muito elevado, mas consistente, no aparecimento de perturbações de ansiedade e de depressão. Mas este estudo tem de ser bem avaliado, porque tem alguns fatores de enviesamento: a média de idades é bastante alta (65 anos), quase não existem mulheres na amostra (aproximadamente 10%), há comorbilidades com consumo excessivo de substâncias opióides de prescrição médica, nomeadamente de oxicodona, o que não existe em Portugal e em outros países da Europa. E mais uma vez, a informação para este estudo foi recolhida durante a dominância da variante Delta, não se podendo extrapolar com segurança estatística o peso dos fatores de risco para realidades diferentes da dos EUA. Mas, apesar do cuidados que temos de colocar na análise deste tipo de dados, parece haver de facto um risco aumentado no aparecimento de algumas situações de doença mental, ainda que não com a intensidade ou com o dramatismo que inicialmente se chegou a pensar que poderíamos vir a registar.

Quer dizer que no início da pandemia houve algum dramatismo com o impacto na saúde mental?

Houve naturalmente algum dramatismo, perfeitamente compreensível, mas agora passada a fase mais complexa, confirma-se plenamente a ideia que o manejo dos problemas de saúde mental associados a eventos desta natureza se deve fazer através de uma lógica de saúde pública, e não meramente hospitalar. Ou seja, para além da disponibilização de informação adequada, o ponto-chave será sempre a deteção ativa dos primeiros sintomas de algumas situações ao nível dos cuidados de saúde primários. Por exemplo, há países que estão a apostar fundamentalmente na criação de estruturas especializadas em meio hospitalar para tratar o longo covid, o que pode ser um contributo importante, mas do ponto de vista da saúde pública, da saúde de uma população, será sempre insuficiente: não creio que seja a opção mais correta, porque quando existe um fenómeno médico de grandes proporções, ele tem de ser atalhado na primeira rede de cuidados, nos cuidados de saúde primários, porque estes são o filtro. Além disso, é preciso que a população o saiba, a persistência de sintomas, como fadiga fácil, diminuição da motivação e da concentração, não é exclusiva da covid-19: há muitas outras situações virais em que depois da fase da doença ativa as pessoas ficam com este tipo de sintomas durante meses. Isto tem a ver com o efeito dos próprios vírus, não é de modo algum exclusivo do covid.

O que deve ser feito então?

Tem de se perceber que o longo covid é uma evidência, que existe um risco aumentado, ainda que provavelmente não tão grande como o antevisto, em relação ao aparecimento de doença mental, e que é preciso fazer a deteção ativa destes casos. As pessoas que tiverem covid-19 e tenham necessidade de recorrer ao seu médico de família devido à persistência de alguns sintomas devem ficar em vigilância ativa. Se o médico considerar que os sintomas não são manejáveis ou que existe uma situação de doença psiquiátrica, então deverá referenciar o doente para cuidados especializados. Mas o local onde a maioria das situações com este tipo de sintomas (fadiga ou falta de concentração) deve ser detetada e gerida, é indubitavelmente nos cuidados primários.

Destaquedestaque"A maior parte das situações de saúde mental associadas à covid-19 foram situações de perturbação de adaptação, e não propriamente de doença mental".

Dois anos passados, quais foram os sintomas mais importantes deixados pela covid-19 na saúde mental?

Eu diria que na área da saúde mental os mais importantes foram a ansiedade, os sintomas depressivos e a insónia. O que se percebe. Tendo as pessoas ficado em confinamento durante várias semanas, o medo e o impacto na rotina foram muito marcados, sendo normal que se desenvolva este tipo de sintomatologia. Aliás, isto não aconteceu só em Portugal, há vários estudos em vários países que demonstraram exatamente o mesmo. Portanto, a maior parte das situações de saúde mental associadas à covid-19 foram situações de perturbação de adaptação, e não propriamente de doença mental.

Foi uma situação que fez aumentar a procura dos serviços de saúde?

As consultas aumentaram de 2019 a 2021, mas isto pode ter dois significados: o aumento da procura pela necessidade de cuidados ou por ter sido dada uma atenção muito particular, por parte dos serviços de saúde, às situações de saúde mental. Foram aumentos modestos, mas mostram que os profissionais da área da saúde mental, frequentemente com menos recursos (infeção, isolamento profilático, equipas em espelho) trabalharam de uma forma muito empenhada desde o primeiro momento.

Ao fim destes dois anos de pandemia e com a perspetiva de mudança para a endemia, pode dizer-se que a saúde mental também está numa fase de mudança?

Estamos numa fase de mudança há algum tempo. Desde o verão de 2021, e em termos de Programa Nacional, agora chamado de Coordenação Nacional para as Políticas de Saúde mental, que a nossa preocupação já era o período pós-covid. Ou seja, retomar a reforma da Saúde Mental, de modo a que esta não fosse interrompida, porque quando, em 2019, apareceu a covid-19, a equipa do programa nacional estava a preparar toda a parte legislativa que iria levar à reforma dos serviços e à sua mudança organizativa. Não deixámos nunca de trabalhar, mas é verdade que tivemos de nos concentrar mais no covid: neste momento, já temos novos enquadramentos legislativos para a área estrutural e para a organização dos serviços.

Mas o que vai mudar concretamente?

Em primeiro lugar, vai mudar o modelo de governo da saúde mental, em segundo a organização interna dos serviços e o seu modelo de gestão e, por fim, o grau de articulação com as outras áreas e parceiros que estão de alguma forma relacionados com a saúde mental.

Destaquedestaque"Os serviços de psiquiatria têm tido uma falta de autonomia gritante no seu desenvolvimento, sobretudo no que se refere às atividades a efetuar fora do hospital".

O que chama de modelo de governo da Saúde Mental?

Pela primeira vez em Portugal vamos ter uma coordenação nacional com competências executivas, e cinco coordenações regionais com as mesmas competências. O que nos permite, por um lado, a tomada de decisões e, por outro, a descentralização da capacidade de decisão. Na minha perspetiva, o modelo anterior não funcionava. Dou-lhe um exemplo: as medidas para a população de Bragança ou de Portimão não poderiam continuar a ser tomadas sistematicamente por alguém que estava longe. As decisões têm de ser tomadas por quem conhece bem a população e a sua realidade. Portanto, o este modelo de governo incluirá uma coordenação nacional, que reportará diretamente ao ministro da Saúde, e cinco coordenações regionais, que farão a articulação com os serviços no terreno. Até hoje, os serviços de psiquiatria têm tido uma falta de autonomia gritante no seu desenvolvimento, sobretudo no que se refere às atividades a efetuar fora do hospital. Sempre que é necessário fazer o que já toda Europa Ocidental faz há muito tempo, que é levar a Saúde Mental para a comunidade, os serviços têm-se defrontado com imensas dificuldades. As coordenações regionais vão ter um papel muito importante não só no desenvolvimento dos serviços, como também na avaliação regular do funcionamento destes.

A que se destina essa avaliação?

Destina-se a homogeneizar mais os serviços, no que se refere à implementação de um conjunto de princípios organizativos fundamentais. Em Portugal, e temos de o reconhecer, há práticas completamente diferentes de serviço para serviço. Não quer dizer que as diferenças não sejam salutares, mas não podemos ter modelos organizativos completamente distintos. É preciso um rumo e uma perspetiva mais homogénea para todos os serviços no país. Não podemos permitir que uma população tenha acesso a um tipo de cuidados e outra, apenas porque vive noutro local, não o tenha. E este é uma área em que e as coordenações regionais vão ter um papel importante, porque vão avaliar os planos de atividade de cada serviço, homogeneizar a sua organização, partilhar a definição de prioridades com os serviços, e contribuir para a alocação dos recursos humanos necessários, que não só são escassos para as necessidades, como estão distribuídos de um modo muito assimétrico.

É um modelo de aproximação dos serviços de saúde mental à comunidade. É uma prioridade?

É. Até porque sabemos que a Saúde Mental ainda está muito envolta em estigma - embora agora como efeito da pandemia tenha entrado vigorosamente para a agenda mediática -e quanto mais perto estivermos das populações, menor será o estigma, facilitando-se assim o acesso aos serviços.

Já falou do modelo de governo da Saúde Mental e da organização interna dos serviços, que vai haver de novo do ponto de vista da gestão dos serviços?

Esse é um terceiro vetor de mudança. A gestão dos serviços de SM tem sido igual à de qualquer outra especialidade ou serviço, e não pode ser. A maior parte da nossa atividade deve ser extra-hospitalar, portanto um modelo de gestão que foi criado para promover fundamentalmente a atividade intra-hospitalar não responde a todas as necessidades de desenvolvimento dos serviços. Este problema está há muito assinalado, mas tem de ser corrigido. A criação de Centros de Responsabilidade Integrada (CRI) pode dar um contributo importante nesta área, se se conseguir transferir progressivamente uma parte substancial da atividade dos serviços para fora dos muros dos hospitais, sem que isso penalize financeiramente os próprios hospitais. Já foram criados dois CRI em 2021, mas o que está determinado na lei é que todos os serviços de saúde mental venham a funcionar segundo este modelo. Irá brevemente ser elaborada uma portaria conjunta de incentivos, dos ministérios da Saúde e das Finanças, que servirá de suporte financeiro aos CRI. Numa altura em que os cuidados hospitalares domiciliários estão a avançar numa série de especialidades, não há nenhum motivo para que o mesmo processo não se consolide cada vez mais a nível dos serviços de saúde mental, que aliás foram pioneiros há muitas décadas nesta aproximação à comunidade.

Esta é a mudança a nível do modelo de gestão, mas haverá outras na articulação dos serviços com outras entidades?

A SM é transversal a todas as áreas, portanto tem de haver maior articulação destes serviços quer com os cuidados primários, quer com os outros parceiros do sector público, convencionado e social. Ou seja, os cuidados de saúde mental devem ser prestados onde é necessário, quer seja nos centros de saúde, em unidades de cuidados continuados ou em estruturas de reabilitação. Até agora, esta articulação estava assente basicamente na boa vontade de algumas pessoas. Com o novo modelo de governo da Saúde Mental esta articulação vai ter de ser definida entre as instituições através de protocolos, que incluem programação de atividades e a sua contratualização. É a única maneira de se funcionar. Não há qualquer hipótese de termos uma boa prestação de cuidados de Saúde Mental se não houver uma articulação sólida entre estes serviços, os cuidados primários e os parceiros da comunidade. Se conseguirmos fazer isto, teremos dentro de alguns anos um sistema de saúde mental bastante diferente daquele que temos agora.

Fala-se muito da Saúde Mental da sociedade, mas que ingredientes compõem a SM de uma população?

A saúde mental é um recurso essencial para o bem-estar individual, para a capacidade de interpretação e de adaptação ao meio ambiente, para a comunicação e relação com os outros, refletindo-se também coletivamente no funcionamento das sociedades. A saúde mental deve ser perspetivada como uma linha contínua, que se fundamenta no bem-estar psicológico, mas que pode incluir em determinadas fases da vida situações de sofrimento psicológico e de doença mental, mais ou menos grave. Não se pode definir saúde mental como apenas a ausência de doença: uma pessoa pode não ter uma doença mental, mas ter sofrimento psicológico. Aliás, todos nós temos, por vezes, algum sofrimento psicológico, decorrente de eventos circunstanciais - o impacto da covid-19 é um bom exemplo disso. Se entendermos que a saúde mental, seja individual seja colectiva, está dependente de diversos factores, facilmente depreendemos que na ocorrência de problemas, as estratégias de resposta têm também de ser diversificadas. Até agora, falei das mudanças estruturais, organizativas e de gestão nos serviços de SM, mas a SM de uma população envolve determinantes que ultrapassam largamente a prestação de cuidados. É muito importante que se tenha esta noção, porque um país que não tenha os seus jovens ou a sua massa laboral com uma saúde mental razoável não é um país com grande futuro.

Destaquedestaque"Nenhuma sociedade resolve os seus problemas de saúde mental investindo apenas no sector específico da saúde".

O que quer dizer concretamente?

Que os problemas psicológicos e as doenças mentais têm muitos determinantes, nomeadamente sociais, que são da maior importância. Por exemplo, a pobreza, a precariedade no trabalho, as pressões decorrentes do estigma poderão ser fatores para o aparecimento/agravamento de problemas de SM. Portanto, o que quero dizer é que não basta intervir a nível dos serviços de saúde para se ter uma boa saúde mental a nível da população. É relevante, mas não basta, se não existir a montante uma intervenção abrangente a nível dos determinantes sociais. E esta mensagem é muito importante, porque nenhuma sociedade resolve os seus problemas de saúde mental investindo apenas no sector específico da saúde. A promoção da saúde mental e a prevenção da doença mental são as principais estratégias para se alcançar um nível satisfatório de saúde mental em termos populacionais.

É preciso mais intervenção de todas as áreas?

Se não houver uma estratégia política, social e económica integrada, bem podemos ter os melhores serviços do mundo, que não conseguiremos ter uma população com uma boa saúde mental. As questões laborais são absolutamente cruciais para a SM - não podemos esperar que pessoas com jornadas contínuas longuíssimas, com baixos salários, com dificuldade em chegar às suas casas, com filhos, e muitas vezes a viver abaixo do limiar de pobreza - tenham uma boa saúde mental. É preciso perceber que a questão da Saúde Mental não se circunscreve apenas aos serviços de saúde, mas abrange transversalmente toda a sociedade, está na escola, no local de trabalho, na rede de transportes, nos apoios sociais, está em toda a parte. Acho que esta é uma ideia que só agora, depois da pandemia, começa a ser interiorizada pelas pessoas. Mas é uma ideia com um enorme poder transformador.

Voltando às mudanças a nível estrutural, organizacional e na gestão, de que modo se vão repercutir concretamente nos cuidados à população?

Neste momento, temos uma oportunidade única para implementar medidas há muito previstas no Plano Nacional de SM, mas nunca colocadas no terreno, e de que já tenho falado em várias ocasiões anteriores. Através das verbas do PRR (Plano de Resiliência e Recuperação), vão ser criadas Unidades de Internamentos em vários locais, de modo a que as pessoas possam ser tratadas em hospitais gerais próximo das suas residências, e não tenham de fazer grandes distâncias para receberem tratamento. Vou dar um exemplo simples: uma pessoa que viva na região das Caldas da Rainha, se tiver de ser internada num serviço de saúde mental terá de recorrer a um hospital de Lisboa. Ou seja, terá de fazer quase 100 quilómetros para ser internada, e os seus familiares terão de fazer a mesma distância para a visitar, o que, independentemente da enorme qualidade dos profissionais, não me parece uma situação razoável. Com as novas unidades de internamento que se irão construir, vamos conseguir garantir uma maior proximidade às populações, e adicionalmente vamos também conseguir que todos os internamentos passem a ocorrer definitivamente em hospitais gerais, cessando o internamento de doentes agudos em hospitais psiquiátricos. Irá também ocorrer uma requalificação de vários serviços que estavam em más condições, tanto de adultos como de crianças/adolescentes. Vão ser acrescentadas 30 equipas de psiquiatria comunitária às 10 já criadas o ano passado. Vão ser criadas novas unidades de internamento forense, mas também residências forenses de transição, para facilitar a colocação de doentes em liberdade para prova. E vamos retomar a desinstitucionalização.

O que vai ser feito nesta matéria?

Teremos de fazer o que já foi feito nos países nossos congéneres, assegurar a transição para a comunidade de doentes internados cronicamente. Este processo foi iniciado há 10 anos, mas entretanto interrompeu-se e deve ser retomado. Para além destes aspectos de natureza mais estrutural, há uma outra área muito importante em que vamos ter de apostar decididamente: os recursos humanos. É um aspeto muito complicado, não somos um país rico, mas a realidade é que há muito que a Saúde Mental tem um número de profissionais muito escasso para as necessidades. Não tanto a nível de psiquiatras de adultos, mas continuam a faltar muitos psiquiatras da infância e adolescência, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. Entre 2006 e 2016, nenhuma das classes profissionais aumentou o seu número, para além dos médicos. Não podemos continuar assim. Por isso digo que as coordenações nacional e regionais vão ter um papel importante, vai ser preciso demonstrar ao poder político a necessidade de aumentar significativamente os recursos humanos nesta área nos próximos anos, e de apontar os riscos que corremos, como país, se não o fizermos.

É preciso apostar cada vez mais nos recursos humanos?

Os recursos humanos são a área mais nuclear para o futuro. Ou melhor, para o presente, porque a escassez não se faz sentir exclusivamente nos serviços especializados de saúde mental. Um dos problemas que vamos ter de atalhar é a falta de programas não farmacológicos nos cuidados de saúde primários: grande parte das pessoas com perturbações de tipo ansioso e depressivo pode ser acompanhada nos cuidados primários, muitas vezes sem recurso a fármacos, mas se não tivermos psicólogos treinados nos centros de saúde, a trabalhar em equipa, isto não se faz. O grande desafio da Saúde Mental para os próximos dez anos passa por uma mudança de mentalidades e de prioridades: se queremos evoluir, o investimento na saúde mental tem de ser considerado uma prioridade política. Neste momento, o investimento nesta área andará perto do 5%, mas vai ter de duplicar nos próximos anos, para se aproximar do que se passa nos restantes países europeus. É esse o esforço que está a ser feito neste momento, e que como é óbvio demorará algum tempo ainda a alcançar.

Destaquedestaque"O grande desafio da Saúde Mental para os próximos dez anos passa por uma mudança de mentalidades e de prioridades: se queremos evoluir, o investimento na saúde mental tem de ser considerado uma prioridade política"..

Qual é a meta temporal para esta reforma?

No terreno, já se está a sentir a ação das equipas comunitárias, mas a parte estrutural terá de estar pronta em 2026. É um prazo apertado, mas se conseguirmos fazer tudo nestes quatro anos será um grande avanço para o nosso país. Não nos podemos esquecer que países com muito mais recursos levaram décadas para fazer a reforma da SM. Mas o sucesso, para além do trabalho de todos os que estão no terreno, vai depender muito de dois aspetos. Por um lado, do poder político, a SM tem de continuar na agenda: a partir do momento que a SM seja definitivamente considerada uma prioridade nacional, independentemente dos ciclos políticos, o caminho da reforma estará mais assegurado, e mais dificilmente se repetirão os retrocessos que já ocorreram no passado. Por outro lado, dependerá do envolvimento dos profissionais nas medidas que vão ser aplicadas. Se os profissionais não estiverem informados e não se sentirem envolvidos, o insucesso está praticamente garantido. Sabemos que ninguém consegue mudanças num ano, o que estamos a tentar é avançar com esta mudança o mais depressa possível, mas mantendo um ritmo controlado. Se não o fizermos em conjunto, envolvendo profissionais e população, será muito difícil transformar seja o que for.

Estamos a deixar para trás uma situação grave de pandemia quais são as preocupações e como deve a população comportar-se?

Há várias mensagens a passar nesta altura. A primeira é que as pessoas devem aproveitar esta vivência da pandemia para se consciencializarem um pouco mais sobre a importância da saúde mental nas suas vidas. Uma sociedade que interioriza a importância da saúde mental na vivência individual e colectiva dos seus cidadãos ganha um capital social absolutamente extraordinário. Em segundo lugar, as pessoas devem estar cada vez mais atentas aos sinais de alerta que possam indiciar problemas de SM, não só em relação a elas próprias como no seio familiar, e recorrerem ao médico de família, não tendo receio de o fazer. Temos de começar a lutar dentro de nós próprios contra o estigma, que existe muito pelo desconhecimento e pelo preconceito. Esta é uma luta para uma geração, e que temos de abraçar como sociedade. Finalmente, as pessoas têm de saber que está a ser feito um esforço enorme para que as condições estruturais melhorem significativamente, para que todos sejam mais bem atendidos. Em relação a Portugal, neste momento, estamos numa fase em que há um apoio político sólido e sustentado para a reforma, mas a minha preocupação, até porque já vivi outros momentos bem diferentes, é que haja recuos. Temos todos de contribuir para que tal não volte a acontecer.

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