Um país menos complexado
1. As vezes em que eu me enganei neste ano foram várias. Na política, escrevi um editorial aqui, neste magnífico periódico, contestando com alguma violência o acordo que conduziu António Costa à liderança do governo. Continuo a pensar que o atual primeiro-ministro não abriu espaço suficiente para que Pedro Passos Coelho, o vencedor da noite eleitoral, pudesse tentar um acordo político fosse de que espécie fosse. Na verdade, pouco depois ficou claríssimo que o líder do PSD também não desejava esse entendimento. Aliás, essa possibilidade repugnava-o. Portanto, ele nunca o quis. A sorte que lhe calhou foi a sorte que fez por merecer. De certa forma, Passos parou no tempo. Lembra-me aquele soldado japonês da Segunda Guerra Mundial que foi descoberto na ilha de Guam, em 1972, desconhecendo que o conflito acabara 27 anos antes. Nunca é bom ficar preso ao passado. O líder do PSD tem de acelerar, mostrar que percebe o ar do tempo.
2. Temi ainda que a presença informal do Bloco e do PCP no governo - estando sem estar - contivesse em si o risco de uma guinada ideológica para a extrema-esquerda capaz de atirar o país muitos anos para trás, designadamente na economia, na vida das empresas, nesta loucura sem fim pelos direitos e no descuido com os deveres e as obrigações que completam o todo. Novamente, enganei-me. A reposição salarial não abriu buraco nenhum no Orçamento do Estado. O défice público foi cumprido olimpicamente, embora com custos - a queda do investimento. E acima de tudo o Código do Trabalho não foi mexido e reaberto ou arrasado, embora essa tentação esteja sempre presente, agora a propósito da exigência para que sejam aumentados os dias de férias. Espero que o primeiro-ministro não ceda um milímetro neste assunto, até porque os empregos acumulados neste ano, em maior número do que se esperava, também se devem a este enquadramento legal menos rígido. Mesmo com a economia a crescer pouco, menos de 2% do PIB, surgiram oportunidades de trabalho e isso deve-se também à reforma feita por Passos Coelho. Só um cego recusa ver isto.
3. Não fui dos mais céticos ao contestar esta solução de governo, não fui; mas ainda hoje tenho muitas dúvidas sobre uma parte do caminho. É verdade que a coesão social melhorou e isso já não é pouco, é muito; devemo-lo a António Costa e a Marcelo Rebelo de Sousa, dois grandes políticos, políticos da melhor estirpe que perceberam o essencial. Compreenderam que o país estava magoado, muito magoado, ferido e perdido, que era preciso fazer alguma coisa para travar a deriva. O ano que acaba ajudou, por isso, a sarar algumas das feridas. Não é possível avançar sempre à bruta, excluindo as pessoas e desvalorizando a negociação, subalternizando a necessidade de envolver os portugueses na mudança necessária, como aconteceu até 2015, quando o autismo político era facilmente confundido com tenacidade. Aqueles foram anos azedos, anos de chumbo, apesar de também justificados pela terrível herança de José Sócrates, outro político invulgar, mas sem qualquer capacidade para ouvir, refletir e travar. Um homem sem moderação, portanto. Viu o abismo e carregou a fundo no pedal, levando Portugal inteiro atrás dele. Sócrates podia ter sido muito útil num país que exagera no elogio hipócrita à humildade. Acabou no entanto por revelar-se um pesadelo, converteu-se num político grotesco - e não estou a incluir nestas contas a investigação judicial. A seu tempo (e já passou demais, o que é escandaloso, diz muito sobre a nossa democracia) veremos o que acontece, apesar de já ser possível fazer um juízo político.
4. Até agora, António Costa tem feito o que havia a fazer, embora em momento algum tenha reconhecido os erros de percurso: a hesitante gestão do processo Caixa Geral de Depósitos, a mal explicada rescisão dos contratos de concessão dos transportes públicos, o aumento da dívida pública, a desvalorização insistente na urgência de encontrar novos caminhos para que a economia acelere e ganhe dinamismo. Seria bom que o primeiro-ministro percebesse que todo o sucesso começa pelo erro, pela hipótese de falhar, pela capacidade de testar novas soluções. Até agora, o governo aplicou Betadine no país, besuntou-nos, mas para que a economia ganhe músculo é preciso muito mais do que isso.
5. Não se trata de lançar projetos megalómanos, mais aeroportos, mais betão e etc., mas de espalhar ideias, projetos-piloto que possam prosperar sem interferência burocrática. Hoje, toda a gente enche a boca com as palavras criatividade e inovação. Deixamo-nos enganar pela quantidade de apps para iPhone e Androide que surgem todos os dias e confundimos isso com uma certa espécie de progresso. Mas como demonstrou um economista da Kellog School of Management, o ritmo da verdadeira inovação na verdade tem vindo a perder velocidade. E no entanto há tanto, mas tanto a fazer. António Costa tem esse desafio para 2017: pensar macro - estabilizar o sistema financeiro -, mas também pensar micro, isto é, aproveitar ideias simples de escala controlável que ajudem Portugal a ser menos complexo e, pelo caminho, menos complexado.