É uma qualidade esquecida ou menorizada nos tempos que correm, mas Vicente Jorge Silva não a ignora na hora do "adeus" ao amigo de longa data: a bondade. "Uma bondade estrutural", como explica o fundador e ex-diretor do Público e que fez de José Manuel Paquete de Oliveira uma figura ímpar nos meios por onde se moveu - e foram tantos.."A nossa relação era exemplar do ponto de vista da força que pode ter a amizade. Mantivemos isso até ao fim", conta Vicente Jorge Silva ao DN, confessando-se ainda consternado pela notícia da morte do provedor do leitor (desde 2013) do periódico que liderou - e que com ele partilha o local de nascimento, a Madeira.."Percebemos a importância da bondade quando somos confrontados com um mundo em que a maldade impera", explica, fazendo que as suas palavras pareçam decalcadas das de Felisbela Lopes. Conhecedora dos meandros da academia, a docente e investigadora da Universidade do Minho não hesita em reconhecer o "coração grande" do sociólogo que se aventurou com sucesso pelo estudo da comunicação e que foi seu arguente nas provas de aptidão pedagógica e capacidade científica e ainda no doutoramento.."Ele ouvia e interessava-se por aquilo que dizíamos. Mesmo os investigadores juniores. Sempre olhei para ele como "o" professor e o Paquete de Oliveira olhava para mim como a colega", diz, mergulhada em alguma nostalgia, adensando depois a tese: "Encontrar o Paquete de Oliveira era uma espécie de oásis num ambiente que é muitas vezes de faz-de-conta.".A generosidade, que se lhe pode reconhecer como valor ingénito, tem para Vicente Jorge Silva uma dimensão "muito cristã". Em sentido amplo e abstrato, também personificada pelo Papa Francisco..Aliás, o percurso de Paquete de Oliveira é tudo menos linear. Foi sinuoso até. Era o próprio que reconhecia já ter feito "muitos trajetos diferenciados", numa história que se começou a desenhar como padre. Entrou no Jornal da Madeira, próximo da diocese da ilha, como chefe de redação, onde permaneceu até 1966. A afinidade com a comunicação parecia, de resto, escrita nas estrelas..Quase uma década mais novo do que o amigo, Vicente Jorge Silva recorda os tempos em que Paquete de Oliveira, ainda menor, era crítico de cinema naquele jornal e foi impedido de continuar as suas crónicas "porque alguém se queixou ao bispo" de que "não tinha idade para ver filmes para maiores de 18 anos". Nada que o tenha feito esmorecer. Em 1973, licenciou-se em Ciências Sociais, no ramo de Sociologia, na Pontifícia Universidade Gregoriana, curso que desaparecera do mapa do ensino superior no nosso país..Regressou a Portugal em 1974, adoentado e, já afastado da Igreja, foi surpreendido pela Revolução dos Cravos - quando se preparava para ir para o Brasil com uma bolsa do Banco Mundial. Passou pelo Diário de Notícias da Madeira e em 1976 rumou ao continente para colaborar com o Expresso, depois com o Diário de Lisboa e ainda com o Jornal de Notícias..Já depois do doutoramento em Sociologia da Comunicação e da Cultura no Instituto Superior do Trabalho e da Empresa (ISCTE-IUL), ganhou notoriedade junto dos portugueses quando, entre 1992 e 1997, foi comentador do Casos de Polícia, da SIC. Aí, realça Felisbela Lopes, valeu ser uma "âncora de credibilidade", num programa que "podia resvalar com facilidade para um jornalismo mais sensacionalista"..Mais: a investigadora gaba-lhe a predisposição para o risco. "Pôs-se sempre à prova, no terreno. Nunca se esqueceu de fazer a ponte com a prática, a tradução daquilo que se ensina nas universidades", acrescenta. Sem lhe regatear elogios, Mário Mesquita eleva a fasquia e equipara o amigo ao Robert Ezra Park, uma das figuras de proa da Escola de Chicago, que também teve um pé no jornalismo e outro na sociologia. "Teve um papel pioneiro a cruzar as duas áreas", fundamenta o antigo diretor do DN, atualmente professor na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS)..Apesar de largos anos de docência - no Ministério da Educação e em diversas instituições universitárias, a última das quais o ISCTE -, recusou fechar em definitivo o capítulo da comunicação social. E, como cumpria os requisitos do Conselho de Opinião da RTP, foi chamado para um "último exame oral", como admitiria mais tarde ao DN: chegou a provedor do telespectador do canal público..Inquebrantável e quando o corpo pedia que pudesse acordar diariamente sem ter agenda predefinida, a partir de dezembro de 2013, Paquete de Oliveira ainda abraçou um derradeiro desafio: o de provedor do leitor do Público..Estava no segundo mandato no cargo, apesar do cancro que já o ia debilitando. Reconhecendo que a doença já se notava na escrita, Vicente Jorge Silva enaltece a postura "bastante estoica e combativa" do amigo, que Felisbela Lopes confirma "nunca se ter fechado em torres de marfim"..Aos seus entes queridos, como a mulher Céu Neves, grande repórter do DN, e os dois filhos, André e Ricardo, ambos formados em Medicina, Paquete de Oliveira deixa aos 79 anos um legado de uma vida cheia e a tal bondade. Mesmo mergulhado na luta contra a maior das adversidades: a morte..Lúcido e assertivo, disse amiúde ter horror a biografias. Contudo, se deixasse, como admitiu, uma nota curricular, o título seria lapidar: "Fisicamente, morre-se uma única vez; socialmente, podemos morrer e nascer várias vezes."