Um Muro, como Belas-Artes

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Alguém disse do Evereste: "Escalá-lo, porquê?! Porque está lá." O mesmo talvez se passe com os muros. Estes nunca são feitos com o propósito provocador de serem saltados, mas, se calhar, porque estão ali, incitem ao desafio... Claro que os antigos comunistas russos não queriam que os dissidentes alemães fugissem, nem Donald Trump quer que os latinos lhe invadam os campos de golfe. Ambos sabem que o autor da frase sobre o Evereste, o alpinista britânico George Mallory (1886-1924), acabou por desaparecer nos Himalaias sem atingir o topo (o corpo só foi encontrado em 1999). Os obstáculos quase sempre acabam por obstaculizar.

O que não impede que os muros, como já se disse, tenham mais do que se lhes diga. Servirem de musa sobre os dramas humanos, por exemplo. Em 1963, John le Carré, ex-espião britânico, escreveu um romance policial sobre o Muro de Berlim. O célebre O Espião Que Saiu do Frio não era exatamente sobre a língua de 66,5 km de gradeamento metálico, cimento armado, redes eletrificadas e torres de observação que dividia Berlim, era sobre o que aquele monumento significava sobre a divisão dos homens.

O espião Alec Leamas não andava de smoking com fichas de casino nos bolsos, como este género literário nos ensinou ser próprio dos protagonistas espiões. Ele é um tipo triste, perdido nos subterfúgios da profissão a ponto de já se ter esquecido da verdade. A vida é uma pincelada ténue de combater pela pátria, uma demão de se vender ao inimigo e um afinal de se ter passado para o outro lado de forma fingida, porque tudo combinado com os seus iniciais serviços secretos (a agência britânica de informações MI6)... O leitor já se perdeu? Calculem então o que é viver essa esquizofrenia de vida. Verdadeiramente triste, falso cínico, como só conseguem ser os personagens de autores moralmente angustiados.
Nas suas metamorfoses, que nem ele entende, Alec Leamas leva para o lado mau, sem o saber nem querer, a sua amante, Liz. Nas páginas finais, ambos estão a saltar o Muro para o lado bom. Ele está no cimo, dá a mão a Liz para subir, do lado mau vêm balas que a matam. Do lado bom, à espera (dele, não dela), os colegas de Alec gritam para que ele salte. Mas ele deixa-se cair para o lado mau e é morto. Às vezes os muros não dividem coisa nenhuma.

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