A HISTÓRIA da literatura portuguesa não conta com muitos textos anónimos como é o caso de um volume recentemente lançado pela Guimarães Editores. Na capa, a ilustração é a duas cores e representa algumas árvores a preto sobre um fundo cobre e com o logótipo da editora. No interior, a autoria da capa é das poucas atribuídas, a Domingos Loureiro, e também das poucas em que se pode confiar, pois os restantes nomes são sempre passíveis de ser postos em dúvida..Ainda na capa, o que chama a atenção é a inexistência do nome do autor e o título da obra apenas surgir na lombada: Kismet (Contos de Fados). É português de certeza o autor pois só alguém criado aqui poderia definir com a palavra «fados» o que lá vai dentro! De resto, na capa não existe mais nenhuma indicação sobre o volume que se tem nas mãos..Ao folhear-se o livro poder-se-ia pensar que a inexistência do nome dos autores se justifica por ser uma antologia de contos e que, por razões gráficas, se quis manter a capa mais liberta de letras. Mas, ao ler-se o índice de autores espera-nos a surpresa de serem 23 que, misteriosamente, seguem as letras do abecedário desde o A até ao Z..ABRE-SE O LIVRO e o mistério permanece com a descoberta da dedicatória: «Knowing w w w w w h you must RTM». Atribuída a Master Yoda, no episódio IV de A Guerra das Estrelas. E começa logo aqui a lista de pistas que pretendem confundir o leitor, porque esta é falsa. Yoda não aparece no primeiro (cronologicamente falando) capítulo da saga de George Lucas... Na página anterior, das duas referências de copyright há uma que refere a Fundação Almeida Garrett que, numa simples busca pela internet, se descobre ser inexistente. A juntar a estas pistas de quem procura a autoria de Kismet está a explicação do que significa o título, segundo a Wikipedia: «Destino, um curso de acontecimentos predeterminados». E remete para um outro significado, em inglês: «Predestination in Islam». Na página ao lado, no entanto, surgem três ícones monárquicos lusitanos, aqueles que expulsaram os árabes do nosso território….A aparição de novos nomes vai acontecendo mas nenhum deles nos encaminha para a autoria. Num Manual de Instruções para o livro, que vem assinado por Pedro Manuel Calvete, explica-se o objectivo do volume, ao longo de várias páginas com nomes críveis e milhares de caracteres em notas com nomes também verdadeiros. Essas instruções referem, numa primeira fase, o que são estes «Contos de Fados»: uma antologia de contos que, conforme as propostas calvinistas para o Terceiro Milénio, recupere a short story, género literário mais próprio para estes tempos. Numa segunda fase, explicam que os contos que se seguem estão a concurso e que num postal incluso os leitores poderão votar nos melhores contos e eleger o vencedor desta 1.ª Edição do Grande Prémio do Conto Português Fundação Almeida Garrett, e segue-se o regulamento..Se o leitor reparar com atenção, irá descobrir neste preâmbulo algumas palavras que estão escritas num outro tipo de letra e que dizem: «um jogo – um erro em cada conto». De resto, ao ler-se os contos vão-se encontrar muitas outras pistas deste género no seu interior, nas biografias e textos explicativos da participação..Para baralhar as coisas, o posfácio é da escritora Luísa Costa Gomes – não se duvida da realidade da autoria – e no qual legitima a existência de vários destes «autores», apesar de colocar a palavra com que os denomina entre aspas, e repassa para o organizador do volume alguma da responsabilidade na reescrita de todos os contos. A maioria dos quais é interessante, de leitura sôfrega e que surpreendem com a sua cabal interpretação do género literário que é o conto..QUANTO À ANTOLOGIA, as quase duas dúzias de textos são assinados por nomes de improvável existência, tais como Carla Colchete, Ermelinda Harridralid, Bernardo Jusarte, Urbano de Utra ou Quim-Roque Queirós, entre outros. Mesmo com a inclusão de uma biografia, os leitores podem muito bem duvidar que Victória Nischenko tenha nascido «acidentalmente em Xian» e resida actualmente em Estrasburgo ou que Duarte Trancoso seja natural da Horta e velejador semiprofissional com duas participações na America Cup..A antologia intitulada Kismet, diz-se no regulamento, pretende ser um manifesto eleitoral das primeiras eleições literárias realizadas em Portugal e permitir a cada leitor o papel de eleitor do seu conto preferido. Até se poderia dizer que o Kismet pode ser um bom substituto literário para quem não acreditar nos candidatos que na vida real se propõem governar Portugal nos próximos quatro anos e decidir colocar o seu boletim de voto numa urna que não seja a política!.Quem está ou o que está por detrás deste Kismet são as perguntas que ficam após se pegar num livro que apaga as autorias e de se o ler. A editora merece confiança e não publicaria esta anónima cabala – é tempo delas – se não tivesse algum interesse. Literário, é claro….Um outro caso misterioso:António Sousa Homem.Na última década, há um outro autor que se tem escondido atrás de um pseudónimo para publicar as suas crónicas passadas na praia de Moledo do Minho. Assina António de Sousa Homem e, ao mesmo tempo que parece ser conhecedor daquelas paragens, é totalmente desconhecido nas mesmas. A funcionária dos Correios não reconhece esse destinatário que diz morar numa casa com jardim em Moledo, de onde se vê uma nesga de praia, e também António Victorino de Almeida garante que não existe na terra que conhece tão bem nenhum homem com este nome..Mesmo assim, a coberto de um anónimo pseudónimo, António Sousa Homem continua a assinar os seus textos regularmente na imprensa e a reuni-los em livro, tendo inclusivamente anunciado a sua presença pública em duas sessões de apresentação onde, curiosamente, não surgiu, deixando os companheiros de mesa, Maria Filomena Mónica e Francisco José Viegas, a fazer a sua vez.