Numa pequena quinta nos arredores de Christchurch, na Nova Zelândia, Omar Nabi cavou um pequeno buraco e afiou uma faca enquanto se preparava para matar uma ovelha como uma bênção para seu pai - uma vítima dos assassínios em massa ocorridos na mesquita de Al Noor..Inclinado entre a coleção de carros enferrujados do pai, Nabi rezou baixinho e cortou o pescoço do animal, voltado para Meca. Retirou a pele e preparou a carne para cozinhar. O sangue foi depositado num buraco onde planeia plantar uma árvore. Nenhuma parte do animal foi desperdiçada, disse..A primeira vez que Nabi matou uma ovelha foi aos 11 anos, e cada passo foi supervisionado pelo pai. Nabi tem agora 43 anos.."O meu pai foi toda a minha vida... Agradeço ao meu pai, ele fez muito", disse. O pai, Haji Daoud Nabi, esperava construir uma pequena mesquita na propriedade, um plano que o filho pretende concluir. "Isto significa muito para mim, o pai colocou um pedaço do céu em Christchurch.".Várias semanas após um ataque a devotos muçulmanos que matou 50 pessoas e deixou dezenas de feridos, a vida dos sobreviventes e das famílias das vítimas mudou irrevogavelmente. Alguns sobreviventes sentem-se encorajados, outros são assombrados por memórias do ataque e não conseguiram regressar à mesquita..Enterrar os entes queridos trouxe alívio a muitas famílias, mas as recordações das suas perdas nunca estão longe, desde um lugar vazio numa mesa de jantar até à perspetiva de celebrações do Ramadão dentro de algumas semanas..Os tiroteios de 15 de março chocaram a Nova Zelândia e levaram o governo a apertar as leis sobre o porte de armas e a lançar um importante inquérito nacional sobre o pior massacre em tempo de paz no país. Um homem australiano suspeito de supremacismo branco foi acusado de 50 homicídios e 39 tentativas de homicídio..O sobrevivente Mark Rangi, de 59 anos, sente que o seu futuro está no limbo devido a feridas em ambas as pernas. O neozelandês, que mora em Sydney, nunca havia estado na mesquita Al Noor antes do ataque..Depois de visitar familiares numa vila vizinha, foi à mesquita antes de regressar a Sydney para procurar orientação espiritual sobre a direção da sua vida..Mas acabou a fugir para salvar a sua vida, tendo sangrado muito devido a feridas de estilhaços nas pernas. Após a cirurgia, Rangi é capaz de andar devagar, mas tem dúvidas de que possa voltar ao trabalho como bagageiro, em Sydney.."Eu não tenho a menor ideia [do que fazer]. Quero ser independente", disse numa pousada da juventude onde está hospedado, com vista para montes de flores colocadas num memorial improvisado. "Tenho muita sorte por não ter ficado pior, por isso sinto-me grato.".Numa casa térrea a curta distância da mesquita Al Noor, Zahra Fathy folheia um álbum de fotos compilado pelo seu marido Hussein Moustafa, que morreu no massacre. Como parte do habitual período de quatro meses e dez dias de luto, ela veste roupas simples, sem adornos, e passa a maior parte do tempo em casa.."É difícil ficar a pensar no que aconteceu, por isso preciso de um escape e pensar no que virá a seguir", disse..O marido passava a maior parte dos dias na mesquita a organizar a biblioteca de textos religiosos e a cuidar de uma horta, que fornecia à comunidade abóboras, rúcula e brócolos..Agora está a considerar, no Ramadão, visitar a sua família alargada em Alexandria, no Egito, onde ela e o marido cresceram.."Ficar sozinha durante o Ramadão é difícil", disse o filho Mohammed, que estava a trabalhar na Arábia Saudita e voltou a casa depois de saber da morte do pai..Depois de algum receio, Mohammed rezou na última sexta-feira na mesquita de Al Noor pela primeira vez desde a morte do pai.."Estou a rezar na mesma área, no mesmo canto que o meu pai costumava rezar. Queria fazê-lo," disse. "No início foi emocionante, chorei, foi muito difícil. Imaginava-o ao meu lado, olhava à volta à procura dos buracos das balas.".Antes do Ramadão, Zahra e a sua família planeiam marcar a formatura do filho mais novo, Zeyad, de 22 anos, que também voltou a Christchurch, estava a trabalhar em Camberra. "Ele estava muito, muito orgulhoso de ti", disse Zahra ao filho..A família tinha um grupo ativo de mensagens no WhatsApp para se manter em contacto. Zeyad havia partilhado uma viagem recente à Europa, para onde o pai também havia viajado quando jovem, e ao Egito. O pai dele tinha dado longas lições de história sobre os lugares que Zeyad visitava e estava feliz por o filho estar a conhecer os familiares egípcios. Agora, o grupo WhatsApp não é tão ativo.."Parece que falta alguma coisa... É difícil explicar, acho que é estranho se o usarmos", disse Zeyad..No tranquilo subúrbio de Christchurch, onde possui uma empresa de homeopatia, Farid Ahmed trabalhou para unir a sua comunidade e o seu país. Farid, um deficiente motor, sobreviveu ao tiroteio, mas a sua mulher Husna foi morta..Recentemente passou um domingo de porta em porta a agradecer aos vizinhos lo apoio que lhe deram. Quando os vizinhos souberam da morte da mulher, acorreram em lágrimas. "Foi um apoio maravilhoso e uma expressão de amor", disse..A sua mensagem de perdão e paz para evitar "um coração que ferve como um vulcão" tem feito manchetes em todo o mundo e foi transmitida num discurso sincero num memorial nacional.."Admiro-o. Não conseguiria fazer isso", disse um vizinho, um cristão que vive quatro portas abaixo. "Aprendemos muito sobre o islão nos últimos dias... (é uma loucura) como as nossas duas religiões são semelhantes". Do outro lado da cidade, o sobrevivente Sardar Faisal empenhou-se em ajudar a coordenar dezenas de voluntários que preparam refeições e fazem recados para as viúvas das vítimas do ataque. Em consequência, percebeu que não passava muito tempo com a sua mulher e filhos pequenos.."Talvez seja culpa de sobrevivente, talvez seja empatia porque sempre que visito as famílias afetadas a única coisa em que penso é que, quando estava no local, estavam a ser alvejadas, as balas que ouvi", disse ao tomar chá em casa de um amigo..No dia do tiroteio, Faisal chegou atrasado à mesquita, um facto invulgar que possivelmente lhe poupou a vida. Quando o atirador entrou e começou a atirar nos fiéis em oração, Faisal estava na casa de banho, prestes a lavar-se para se preparar para a oração, e assim pôde esconder-se do atirador..O que ele viu e ouviu naquele dia assombra-o, disse. Tem dificuldades em se concentrar no trabalho e tem pesadelos como se fossem cenários mortais, quase como um jogo de vídeo, executado em repetição durante o sono..Ao lado da tristeza e da dor outros sentem que a experiência revigorou as suas vidas. "Deu-me coragem", disse Hazem Mohammed, oriundo de Bagdad, que se fez passar por morto na mesquita de Al Noor quando o assassino se encontrava sobre ele, ferido e rodeado pelos corpos de outros devotos.."Eu choro por duas razões. A primeira porque eu perdi amigos, desapareceram", disse. "E as outras lágrimas... essas são de alegria, porque renasci na sexta-feira 15 de março de 2019.".Jornalista da agência Reuters
Numa pequena quinta nos arredores de Christchurch, na Nova Zelândia, Omar Nabi cavou um pequeno buraco e afiou uma faca enquanto se preparava para matar uma ovelha como uma bênção para seu pai - uma vítima dos assassínios em massa ocorridos na mesquita de Al Noor..Inclinado entre a coleção de carros enferrujados do pai, Nabi rezou baixinho e cortou o pescoço do animal, voltado para Meca. Retirou a pele e preparou a carne para cozinhar. O sangue foi depositado num buraco onde planeia plantar uma árvore. Nenhuma parte do animal foi desperdiçada, disse..A primeira vez que Nabi matou uma ovelha foi aos 11 anos, e cada passo foi supervisionado pelo pai. Nabi tem agora 43 anos.."O meu pai foi toda a minha vida... Agradeço ao meu pai, ele fez muito", disse. O pai, Haji Daoud Nabi, esperava construir uma pequena mesquita na propriedade, um plano que o filho pretende concluir. "Isto significa muito para mim, o pai colocou um pedaço do céu em Christchurch.".Várias semanas após um ataque a devotos muçulmanos que matou 50 pessoas e deixou dezenas de feridos, a vida dos sobreviventes e das famílias das vítimas mudou irrevogavelmente. Alguns sobreviventes sentem-se encorajados, outros são assombrados por memórias do ataque e não conseguiram regressar à mesquita..Enterrar os entes queridos trouxe alívio a muitas famílias, mas as recordações das suas perdas nunca estão longe, desde um lugar vazio numa mesa de jantar até à perspetiva de celebrações do Ramadão dentro de algumas semanas..Os tiroteios de 15 de março chocaram a Nova Zelândia e levaram o governo a apertar as leis sobre o porte de armas e a lançar um importante inquérito nacional sobre o pior massacre em tempo de paz no país. Um homem australiano suspeito de supremacismo branco foi acusado de 50 homicídios e 39 tentativas de homicídio..O sobrevivente Mark Rangi, de 59 anos, sente que o seu futuro está no limbo devido a feridas em ambas as pernas. O neozelandês, que mora em Sydney, nunca havia estado na mesquita Al Noor antes do ataque..Depois de visitar familiares numa vila vizinha, foi à mesquita antes de regressar a Sydney para procurar orientação espiritual sobre a direção da sua vida..Mas acabou a fugir para salvar a sua vida, tendo sangrado muito devido a feridas de estilhaços nas pernas. Após a cirurgia, Rangi é capaz de andar devagar, mas tem dúvidas de que possa voltar ao trabalho como bagageiro, em Sydney.."Eu não tenho a menor ideia [do que fazer]. Quero ser independente", disse numa pousada da juventude onde está hospedado, com vista para montes de flores colocadas num memorial improvisado. "Tenho muita sorte por não ter ficado pior, por isso sinto-me grato.".Numa casa térrea a curta distância da mesquita Al Noor, Zahra Fathy folheia um álbum de fotos compilado pelo seu marido Hussein Moustafa, que morreu no massacre. Como parte do habitual período de quatro meses e dez dias de luto, ela veste roupas simples, sem adornos, e passa a maior parte do tempo em casa.."É difícil ficar a pensar no que aconteceu, por isso preciso de um escape e pensar no que virá a seguir", disse..O marido passava a maior parte dos dias na mesquita a organizar a biblioteca de textos religiosos e a cuidar de uma horta, que fornecia à comunidade abóboras, rúcula e brócolos..Agora está a considerar, no Ramadão, visitar a sua família alargada em Alexandria, no Egito, onde ela e o marido cresceram.."Ficar sozinha durante o Ramadão é difícil", disse o filho Mohammed, que estava a trabalhar na Arábia Saudita e voltou a casa depois de saber da morte do pai..Depois de algum receio, Mohammed rezou na última sexta-feira na mesquita de Al Noor pela primeira vez desde a morte do pai.."Estou a rezar na mesma área, no mesmo canto que o meu pai costumava rezar. Queria fazê-lo," disse. "No início foi emocionante, chorei, foi muito difícil. Imaginava-o ao meu lado, olhava à volta à procura dos buracos das balas.".Antes do Ramadão, Zahra e a sua família planeiam marcar a formatura do filho mais novo, Zeyad, de 22 anos, que também voltou a Christchurch, estava a trabalhar em Camberra. "Ele estava muito, muito orgulhoso de ti", disse Zahra ao filho..A família tinha um grupo ativo de mensagens no WhatsApp para se manter em contacto. Zeyad havia partilhado uma viagem recente à Europa, para onde o pai também havia viajado quando jovem, e ao Egito. O pai dele tinha dado longas lições de história sobre os lugares que Zeyad visitava e estava feliz por o filho estar a conhecer os familiares egípcios. Agora, o grupo WhatsApp não é tão ativo.."Parece que falta alguma coisa... É difícil explicar, acho que é estranho se o usarmos", disse Zeyad..No tranquilo subúrbio de Christchurch, onde possui uma empresa de homeopatia, Farid Ahmed trabalhou para unir a sua comunidade e o seu país. Farid, um deficiente motor, sobreviveu ao tiroteio, mas a sua mulher Husna foi morta..Recentemente passou um domingo de porta em porta a agradecer aos vizinhos lo apoio que lhe deram. Quando os vizinhos souberam da morte da mulher, acorreram em lágrimas. "Foi um apoio maravilhoso e uma expressão de amor", disse..A sua mensagem de perdão e paz para evitar "um coração que ferve como um vulcão" tem feito manchetes em todo o mundo e foi transmitida num discurso sincero num memorial nacional.."Admiro-o. Não conseguiria fazer isso", disse um vizinho, um cristão que vive quatro portas abaixo. "Aprendemos muito sobre o islão nos últimos dias... (é uma loucura) como as nossas duas religiões são semelhantes". Do outro lado da cidade, o sobrevivente Sardar Faisal empenhou-se em ajudar a coordenar dezenas de voluntários que preparam refeições e fazem recados para as viúvas das vítimas do ataque. Em consequência, percebeu que não passava muito tempo com a sua mulher e filhos pequenos.."Talvez seja culpa de sobrevivente, talvez seja empatia porque sempre que visito as famílias afetadas a única coisa em que penso é que, quando estava no local, estavam a ser alvejadas, as balas que ouvi", disse ao tomar chá em casa de um amigo..No dia do tiroteio, Faisal chegou atrasado à mesquita, um facto invulgar que possivelmente lhe poupou a vida. Quando o atirador entrou e começou a atirar nos fiéis em oração, Faisal estava na casa de banho, prestes a lavar-se para se preparar para a oração, e assim pôde esconder-se do atirador..O que ele viu e ouviu naquele dia assombra-o, disse. Tem dificuldades em se concentrar no trabalho e tem pesadelos como se fossem cenários mortais, quase como um jogo de vídeo, executado em repetição durante o sono..Ao lado da tristeza e da dor outros sentem que a experiência revigorou as suas vidas. "Deu-me coragem", disse Hazem Mohammed, oriundo de Bagdad, que se fez passar por morto na mesquita de Al Noor quando o assassino se encontrava sobre ele, ferido e rodeado pelos corpos de outros devotos.."Eu choro por duas razões. A primeira porque eu perdi amigos, desapareceram", disse. "E as outras lágrimas... essas são de alegria, porque renasci na sexta-feira 15 de março de 2019.".Jornalista da agência Reuters