Lembro-me de ter medo do homem do saco. Ouvi a história do homem do saco e sempre que via um homem com um saco olhava para o tamanho do saco e calculava se era possível eu caber lá dentro. Tive sempre dúvidas e por isso abrandava o passo até o perder de vista. "Onde é que ele põe as coisas para me enfiar lá dentro?", era outra dúvida. Também tinha medo dos ladrões. Uma noite confessei à minha irmã e ela declarou triunfante: "Eu já não tenho esse medo. Agora tenho medo de que a casa arda." Cresci, queria ela dizer. E eu, desgraçada, somei ao meu medo de ladrões o de pânico de um fogo que me parecia muito mais plausível e real, enquanto a minha irmã dormia ferrada. Era cansativo dormir. Ficava a olhar para a porta e para a janela, que eram cada uma de cada lado, a ver se aparecia um ladrão ou o fogo. Tinha medo de tudo no escuro. Até do roupão que atrás da porta ganhava a silhueta de um monstro. E o Calvin tem razão: é doloroso para uma criança pôr os pés no chão com a quantidade de bichos e monstros que estão debaixo da cama. Não há coragem maior do que a de uma criança no escuro, caramba. De quando em vez queixava-me baixinho dos ladrões, mas relativizavam o meu medo sem nunca me convencerem. Era o mesmo com as saudades. Não foram os portugueses que inventaram as saudades, foram as crianças. As crianças deixam de comer com saudades, adoecem, envelhecem um bocadinho quando sentem o coração apertado e as lágrimas a atulharem-se na garganta. E a resposta é sempre a mesma e vazia: "Venho já." O meu irmão ficava horas à espera de que a minha mãe lhe fosse deixar a lancheira à escola e bastava ele se distrair que já lá estava a lancheira em cima da mesa e a minha mãe já não. O que ele detestava aquilo. Não era a escola, eram as saudades. O meu filho pede-me para eu ficar um bocadinho quando o vou deitar e eu não me lembro de nada disto. "A porta está aberta e eu estou já aqui." Também lhe digo para ele não ter medo, como quem diz não tenhas sede. Como se isto fosse coisa decente para dizer a alguém que acredita em monstros e que tudo é possível. Acreditar que tudo é possível é um abismo, lembro-me bem. Mas hoje penso nos pais. Hoje não são só os filhos que têm medo, são os pais pelos filhos. E os filhos, desgraçados, vivem rodeados de medos que não são seus. Tive sorte: em minha casa só eu é que tinha medo, mais a minha irmã que dormia profundamente. Afinal era um medo bom, o meu.