Um mau exemplo. "Se não cumprimos as regras a situação pode descontrolar-se"
Uma falha de planeamento e prevenção, com um resultado difícil de antecipar em termos de contágios, mas que é desde já um péssimo exemplo e uma mensagem errada passada aos portugueses. "Isto não pode voltar a acontecer até que tenhamos a situação controlada, com 60 a 70% da população vacinada. Se não cumprirmos as regras a situação pode-se descontrolar", alerta o bastonário da Ordem dos Médicos. Perante as imagens da multidão em euforia que na terça-feira se juntou nas imediações do estádio de Alvalade, em muitos casos sem distanciamento nem máscara, Miguel Guimarães diz não conseguir entender como foi possível que as autoridades não tenham antecipado o "previsível" ajuntamento de milhares de adeptos nos festejos de um campeonato que há 19 anos fugia ao Sporting.
"Era mais que previsível que isto acontecesse, não percebo como não foram tomadas medidas preventivas adequadas", sublinha o bastonário. E se há quem defenda que seria impossível controlar a imensidão de adeptos leoninos que se juntou em Alvalade, Miguel Guimarães sustenta que há todo um trabalho de sensibilização a montante, que poderia ter envolvido o próprio clube e que "na prática não se fez". Responsabilidade de quem? "Quem tinha que definir as regras por antecipação era a Direção-Geral da Saúde".
O bastonário da Ordem dos Médicos sustenta que não é possível prever os efeitos da multidão que se juntou nas ruas de Lisboa: "Isso depende de quantas pessoas infetadas estiveram lá. Mas pode haver uma subida de casos". Mas há um resultado que é imediatamente visível - "Isto gera uma grande sensação de injustiça, há pessoas que foram multadas porque estavam sem máscara e ou porque estavam num grupo de oito ou dez pessoas".
O "mal está feito", a questão agora "é o que se faz a seguir", diz o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, que tem uma resposta para a pergunta: "testar massivamente" os adeptos que estiveram em Alvalade. "Seria sensato que as pessoas que estiveram nos festejos se testassem entre 48 a 72 horas a seguir ao evento. E que, no entretanto, não contactem com pessoas mais idosas que não estejam vacinadas, sobretudo aqueles que sabem que tiveram um comportamento de maior risco, que estiveram mais em cima de outros, sem máscara".
Nestas circunstâncias "há uma probabilidade que não é negligenciável" de infeção, sobretudo face à disseminação da variante britânica do Sars-CoV-2, o que justifica a realização de testes. Carmo Gomes sublinha, aliás, que seria "muito sensato e uma prova de responsabilidade social" se o próprio clube leonino "tomasse a iniciativa e, em colaboração com a Direção-Geral da Saúde, montasse um esquema" que facilitasse aos sócios e adeptos a realização desses testes.
Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, sublinha também que é importante que quem participou nos eventos de terça-feira se automonitorize por estes dias e que "pode ser vantajoso" fazer o teste à covid-19. "Os próximos dias vão ser importantes", sublinha, acrescentando que agora é preciso ter "agilidade para reduzir" o risco de propagação. Sobre o impacto dos festejos nos números de contágio, o médico diz que não é possível saber ao certo, mas que no próximo fim de semana e início da próxima semana já será possível perceber se há repercussões visíveis.
Para Ricardo Mexia há dois pontos que permitem uma perspetiva mais otimista - por um lado a baixa taxa de incidência atual, por outro o facto de os ajuntamentos terem acontecido no espaço exterior, ao ar livre, e não em recinto fechado. Seja qual for o desfecho este epidemiologista e especialista em saúde pública alerta, no entanto, que "é fundamental que as pessoas tenham a perceção de que a pandemia não acabou". E, lembrando que há ainda atividades com restrições, sublinha que "se este tipo de situação volta a repetir-se será muito difícil explicar porque é que há outras atividades que não podem" fazê-lo.
Ontem, a Direção-Geral de Saúde veio recomendar a quem esteve nos festejos que "esteja atento aos sintomas de COVID-19 e que "procure reduzir os contactos nos próximos 14 dias", cumprindo as medidas de prevenção da infeção como o "distanciamento físico, o uso de máscara, a ventilação dos espaços, a higiene das mãos e a etiqueta respiratória". A DGS recomenda "a realização de um teste no 5.º e no 10.º dia após das celebrações" a quem não respeitou as medidas de proteção.
Questionada pelo DN sobre as medidas tomadas para evitar o cenário que acabou por se concretizar em Alvalade, a DGS reenviou a nota emitida na véspera, dizendo ter participado "num conjunto de reuniões promovidas pela Câmara de Lisboa e pelo Ministério da Administração Interna sobre a provável aglomeração de adeptos e simpatizantes do Sporting em várias zonas urbanas do país e em particular na cidade de Lisboa".
"Tendo em conta o risco acrescido para a Saúde Pública que estas eventuais celebrações podem representar, a DGS emitiu um conjunto de recomendações para as autoridades locais e forças policiais". O único momento em que essa sensibilização foi feita por autoridades públicas reporta-se a uma conferência de imprensa da PSP realizada na tarde de terça-feira, onde foi pedido distanciamento social nos festejos e relembrada a obrigatoriedade do uso de máscara e a proibição de consumo de bebidas alcoólicas na via pública.
Adalberto Campos Fernandes, antigo ministro da Saúde e especialista em Saúde Pública, sublinha que "temos lidado de forma particularmente aleatória com os grandes eventos", sejam de natureza "desportiva, política ou religiosa". Mas se "não somos particularmente dados a questões de planeamento" estamos sempre "em bom momento para refletir" sobre o que aconteceu, até porque vem aí outros eventos dados a festejos coletivos, com o final da I Liga e a final da Taça de Portugal - "Será importante que façamos um esforço maior de preparação".
Adalberto Campos Fernandes diz que "temos de ser razoáveis e compreender o que é o contexto de um festejo coletivo": "Não querendo desculpar comportamentos individuais, não é sensato dizer que isto não era previsível".
E é neste contexto que o antigo governante sublinha um "aspeto muito positivo do que se passou na terça-feira. "Tivemos uma manifestação coletiva de contentamento que em boa medida violou a lei. E tivemos um bom senso extraordinário das forças policiais, que tiveram uma atitude muito sóbria perante uma mistura explosiva de emoção e tensão". Com uma resposta "contida" e "proporcionada" deram uma "prova de responsabilidade", mesmo que por vezes tenha "dado a sensação de que não tinham guião" para responder ao que estava a acontecer. Mas, acrescenta, o que aconteceu "é um problema de saúde pública, não de ordem pública": o que as autoridades policiais têm de executar "são orientações emanadas da saúde pública e talvez aí tenha havido falta de uma orientação específica".