Um livro esquecido
Há 15 anos esta coluna trouxe um texto com este título, denunciando: "Uma das obras mais importantes da cultura ocidental está hoje praticamente esquecida." O volume em causa era a Legenda Áurea do beato Tiago de Voragine (1230-1298), uma colectânea da vida dos santos e best-seller por vários séculos, chegando a ser no século XIV o livro mais lido a seguir à Bíblia. Esta ausência foi entretanto colmatada ao mais alto nível. Logo em Dezembro de 2004 a Livraria Civilização Editora apresentou ao público português uma soberba edição ilustrada, com introdução e revisão do saudoso professor Aníbal Pinto de Castro. Apesar de o preço a manter longe de muitas bolsas, o livro deixou de estar esquecido. Existe, porém, outra lacuna que, em certos aspectos, é ainda mais grave.
O livro hoje conhecido como Catena Aurea nasceu de uma encomenda ao mais alto nível. Foi o papa Urbano IV que em 1262 pediu a frei Tomás de Aquino, da Ordem dos Pregadores, uma Glossa continua super Evangelia, a compilação dos comentários que os antigos padres da Igreja tinham dedicado a cada frase dos Evangelhos. A obra que o pontífice pretendia era quase uma impossibilidade: quatro volumes onde, após cada versículo, ou conjunto de versículos, de cada um dos Evangelhos canónicos, se lesse aquilo que as grandes referências da história da Igreja tinham elaborado. O destaque iria naturalmente para os principais doutores, quer da Igreja Ocidental, como S. Agostinho, S. Jerónimo, S. Ambrósio, S. Gregório, quer da Igreja Oriental, S. Basílio, S. João Crisóstomo, Orígenes, S. Gregório de Nisa. Mas dezenas de outros especialistas do primeiro milénio da Igreja aparecem nesta ímpar enciclopédia do comentário evangélico.
A tarefa, que seria imponente mesmo no tempo dos computadores e bases de dados, foi levada a cabo com penas de ganso em pergaminho de couro de vaca. Só conceber o esforço mostra-se inimaginável. Para a realizar, a escolha caiu num já consagrado professor de Teologia da Universidade de Paris, então a ensinar em Orvieto. Frei Tomás de Aquino, que ainda não tinha escrito a Suma Teológica, era já uma estrela brilhante no firmamento escolástico. Aliás, este papa tinha uma clara preferência pelo autor, escolhendo-o de novo, ano e meio depois, para escrever o ofício litúrgico da festa do Corpo de Deus, ainda hoje usado, que foi instituída a 11 de Agosto de 1264, três meses antes da morte do pontífice. Também por isso, Urbano só veria o primeiro dos quatro volumes que solicitara, sobre S. Mateus. Felizmente, a obra continuou depois do falecimento do ilustre patrocinador, sendo concluída apenas em 1268.
Este texto foi também um best--seller nos séculos seguintes, só ofuscado pela ainda maior divulgação das Sumas do próprio organizador. Mas ele mesmo utilizou intensamente essa sua colectânea como obra de referência nos tratados posteriores. Trata-se, sem dúvida, de um trabalho notável. Embora nele não se leia uma única linha escrita pelo maior teólogo escolástico, o génio de S. Tomás sente-se a cada passo. De facto, composto por retalhos de múltiplas origens e estilos, o texto flui com naturalidade mal se notando as costuras, graças à perícia do organizador. Com o episódico acrescento da conjunção "ou então" (vel aliter), as interpretações dos vários mestres seguem-se de forma simples e informativa, criando pequenos tratados de patrística em cada lição.
750 anos após a sua publicação original, o livro não se pode considerar esquecido na cultura ocidental. Isso deve muito à iniciativa de outro santo, que o trouxe para o nosso tempo. O beato John Henry Newman, então ainda um jovem professor em Oxford, organizou uma cuidada tradução para inglês dos quatro volumes, que foi apresentada em 1841. Essa publicação, sucessivamente reeditada e já disponível online (por exemplo em www.ecatholic2000.com/catena/untitled-111.shtml), tem permitido a muitos o acesso a este enciclopédico esforço. O esquecimento é, pois, só nosso, faltando traduções em português.
O interesse destes volumes não é difícil de apreciar. Todos os dias os Evangelhos são lidos e comentados milhões de vezes em todo o mundo. Saber o que acerca da leitura do dia tinham a dizer os maiores teólogos do primeiro milénio do cristianismo, através da escolha de um dos maiores doutores de sempre, tem valor incalculável. Para tirar dúvidas acerca de uma passagem desafiante, para conceber homilias ou as complementar, ou simplesmente para conhecer o que pensavam as primeiras gerações de santos, esta obra constitui um auxiliar indispensável. Tanto mais que ninguém se atreveu a repetir a façanha, o que torna Catena Aurea de S. Tomás de Aquino um esforço isolado de organizar as grandes sentenças evangélicas dos padres. Quando a teologia católica parece enredada no seu labirinto, o regresso de Catena Aurea, combinando verdade evangélica com solidez patrística, é precisamente o que faz falta.