Um livro escrito no coração do fogo

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Mais uma ficção de Jaime Rocha que fala do mal com fascínio e repulsa

A literatura aborda o mal na sua radicalidade, apresentando-o numa ambivalência feita de fascínio e de repulsa. Dostoievski escreveu sobre essa atracção medrosa, comparando-a à excitação jubilosa - que envolve um certo prazer - do espectador de um incêndio. Desse fogo nocturno vive Anotação do Mal, de Jaime Rocha, que acaba de ser publicado pela Sextante.

Aceitar este lado irredutível da dor, do terrífico, do medo, da sombra, do contraste entre o desejo e a morte, é o que Jaime Rocha tem vindo a fazer no seu singular percurso literário, sobretudo enquanto poeta da alucinação onírica, da fulguração verbal, da violência imagética, surreal, visionária, mas também como dramaturgo.

Nesta ficção fragmentária, estruturada em actos ou andamentos mínimos, o homem está perdido e sabe que é da perdição que pode nascer a alegria. De um silêncio dobrado para dentro, implosivo, Anotação do Mal fere com a "súbita agressividade do animal", queima com a espada do lápis, comove como as paisagens dos filmes de Tarkovski, anuncia a peste que percorre as ruas, que são a vida assaltada pelo golpe do tempo.

Texto ininterrupto de vozes mudas, inclassificável enquanto género, mesmo tendo em conta a sua tendência poética, este livro retoma, renovando-a, a plasticidade de Do Extermínio.Anotação do Mal apodera-se, porém, de uma relação narrativa com o mundo, mais discursiva, reinventando, de forma singular, pestes como a de Camus (para quem o único problema filosófico é o suicídio) ou as cegueiras de Sabato ou Saramago.

E é da destruição do mundo que Jaime Rocha fala, da impossibilidade de fuga desse lugar nenhum, do medo onde nunca é Deus. Escreve o autor de Lacrimatória a partir de uma paisagem fantástica e insólita: "O homem não consegue fugir, os seus guinchos de dor atravessam os muros das casas e ninguém ouve porque aquele vento surge de uma outra dimensão, de um país onde os prédios estão envolvidos em arames, um país desconhecido que julga ter descoberto a felicidade. Não é Deus, é um poder absoluto, de onde chegam as flores mortas."

O poderio metafórico de Jaime Rocha ajuda à definição do mal, escandaloso como a morte que se quer longe. Skandalon, em grego, quer dizer obstáculo que faz cair. O texto fala da queda e da não redenção a não ser pela palavra escrita. Esta torna-se teatro de Kantor, "loucura branca" - como a que dá título a um outro livro do escritor . Para, em esperança, o "corpo poder assistir à chegada dos pássaros."

Jaime Rocha escreve contra a força da inércia, o injustificável, o azedume do quotidiano, o banal. Nessa medida, constrói, em tom plúmbeo, muito mais uma visão do mal do que uma verdade do mal: "Enquanto ensaia o seu próprio suicídio, (o homem) vê o espectáculo da crueldade, da decadência, da destruição e da morte. Um outro homem, com a minúcia de um contabilista, faz o registo das pequenas catástrofes quotidianas."

A demência está presente na escrita deste poeta de obscuridades iluminadas, perturbadoras, em que a cultura medieval se instalou e deixou frutos de convulsão, de desfiguração, de interdito, de violência, com a mesma força do desejo. Esse renasce, por breves instantes, e faz caminhar.

O cenário é de desolação, de dor acutilante, a morte é sufocada pela beleza. "Ninguém escreveu, ou pintou, esculpiu, modelou, construiu, inventou, sem ser para sair do inferno", escreveu Artaud, acrescentando que, para isso, preferia as naturezas do "convulsionário tranquilo", que era Van Gogh, às "fervilhantes composições de Brueghel, o Velho, Hyeronimus Bosch." Jaime Rocha fica do lado destes últimos. No coração do fogo.

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