Um líder espanhol volta a Cuba depois do "sequestrado" e do "cavalheiro do bigodinho"
O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, viaja hoje para Cuba para consolidar a relação bilateral entre os dois países, num novo contexto de abertura económica por parte da ilha. Será a primeira visita oficial a Havana de um chefe de governo de Espanha em 32 anos, apesar de este país europeu ser o terceiro maior parceiro comercial de Cuba. Uma "anomalia" com a qual Sánchez pretende acabar.
Sánchez não viaja sozinho: leva uma delegação de empresários com interesse em explorar um mercado de 11,5 milhões de habitantes. O primeiro-ministro participará num fórum em que cerca de 200 empresas de ambos os países estão registadas, incluindo as gigantes de telecomunicações Telefonica e a companhia aérea Iberia, segundo a AFP. As pequenas e médias empresas espanholas que atuam atualmente em Cuba reclamam entretanto uma dívida de 300 milhões de euros da parte das sócias cubanas.
O objetivo de Espanha, que mantém relações diplomáticas ininterruptas com Cuba (sua antiga colónia) desde 1902, é aumentar a sua presença na ilha ao nível do turismo, das energias renováveis e infraestruturas. Sánchez vai ainda reunir-se com a comunidade espanhola em Cuba - são mais de 140 mil pessoas.
Não se sabe se, na agenda da viagem, haverá encontros com os dissidentes e os opositores cubanos, com o El Mundo (crítico do governo socialista) a acusar Sánchez de viajar "com uma mala carregada de oxigénio político e económico" para o presidente cubano, Miguel Díaz-Canel.
Se a visita de Sánchez correr bem, pode abrir caminho a uma do rei Felipe VI, em 2019, quando se assinalam os 500 anos da fundação de Havana.
O socialista Felipe González foi o último chefe do governo espanhol a fazer uma visita oficial a Cuba, em novembro de 1986. Uma visita que, segundo o El País, a imprensa espanhola da época apelidou de "estranha", chegando a falar de "sequestro". Tudo porque, após a receção oficial, o então líder cubano Fidel Castro levou González para pescar em Cayo Piedra e durante dois dias não houve programa oficial nem se sabia onde andavam. No barco ia também, entre outros, o escritor Gabriel García Márquez.
"Entre mergulhos, vinho, cerveja e lagosta, o clima era relaxado, embora as correntes subterrâneas circulassem pelo pano de fundo das relações: Fidel não esqueceu que Felipe tinha renunciado ao marxismo no XXVIII Congresso do PSOE (1979) e, ainda menos, que o seu amigo tivesse acabado de meter a Espanha na NATO, algo que ele não gostava nada", recorda o El País. Ao final de dois dias, regressaram todos bronzeados e acabaram no cabaré Tropicana, onde foram fotografados entre as bailarinas cheias de plumas.
No final da viagem, havia contudo acordos concretos que abriram caminho à sólida presença empresarial espanhola na ilha. Também se chegou a acordo para o pagamento de indemnizações aos cidadãos espanhóis afetados pela Revolução cubana e, dias depois, foi libertado Eloy Gutiérrez Menoyo. O espanhol foi um dos comandantes da revolução, mas mudou de lado após a vitória e acabou em Miami à frente de um grupo de exilados que tentou uma incursão armada, durante a qual foram presos.
Contudo, o último a estar em Havana foi José María Aznar, por ocasião da Cimeira Ibero-americana de 1999. Aznar, do Partido Popular, levou consigo o rei Juan Carlos (e a rainha Sofia) e terá passado o tempo todo, sem sucesso, a tentar evitar que o monarca ficasse a sós com Fidel.
O líder cubano tratava o primeiro-ministro por "cavalheiro do bigodinho", tendo Aznar sido responsável pela rutura da cooperação oficial com Havana e por impulsionar a chamada "posição comum" da União Europeia, que condicionou as relações entre este bloco e Cuba à abertura democrática na ilha (aprovada em dezembro de 1996, seria revogada 20 anos depois). Antes de partir para Havana, Aznar não hesitou em dizer: "Em Cuba, nada mudará enquanto Castro estiver no poder."
Os planos de Aznar saíram gorados logo no aeroporto, quando Fidel quebrou o protocolo e convidou o rei a entrar no seu carro para lhe dar boleia até à residência do embaixador espanhol, onde ficaria hospedado. Aznar, a quem os jornalistas apelidaram de "o acompanhante", foi noutro carro até ao hotel. "Durante os três dias seguintes, Aznar, o rei e Fidel Castro ofereceram um espetáculo digno do camarote dos irmãos Marx (...) Os maus modos de Aznar, que chegou a abandonar durante um bocado um almoço entre os líderes ibero-americanos enquanto Castro falava, contrastaram com o bom humor de Juan Carlos, que Fidel manteve entretido a todo o momento", lembrou o El País.
O rei, apesar da imagem de simpatia, não hesitava em mandar mensagens: "Só com uma autêntica democracia, com plena garantia das liberdades e o escrupuloso respeito dos direitos humanos, poderão os nossos povos enfrentar com êxito os desafios do século XXI", disse Juan Carlos, que foi surpreendido por Fidel que lhe ofereceu um retrato dos pais, realizado durante a viagem que fizeram a Havana em 1948.
Esta é também a primeira visita de um líder europeu à ilha desde a tomada de posse de Miguel Díaz-Canel como presidente em abril, tendo sucedido a Raúl Castro. Pela primeira vez em quase seis décadas, não há um Castro à frente dos destinos da ilha (apesar de Raúl continuar a ser o líder do Partido Comunista de Cuba até 2021).
Díaz-Canel está a continuar com as reformas iniciadas por Raúl Castro, com o objetivo de captar mais capital estrangeiro e diversificar o número de parceiros (em especial por causa da crise que enfrenta a Venezuela, o seu principal sócio político e económico). Turismo e construção deram o empurrão necessário para que o país passasse da recessão em 2016 (queda de 0,9% do PIB) para um crescimento de 1,6%. Mas houve também um travão ao setor privado, estando previstas novas regras para os trabalhadores que trabalham por conta própria.
Isto numa altura em que a relação com os EUA volta a não ser a melhor, depois de anos de abertura durante os mandatos de Barack Obama (que chegou a visitar a ilha). O atual presidente norte-americano, Donald Trump, trouxe um novo arrefecimento das relações, com mais sanções que endurecem o embargo (que fez 60 anos).
Por outro lado, Cuba atravessa um processo de reforma constitucional. Entre as alterações ao texto de 1976, está por exemplo a eliminação da palavra comunismo (apesar de não haver alteração ao nível do sistema de partido único) e a criação da figura do presidente e do primeiro-ministro. A nível social, por exemplo, abre-se a porta à legalização dos casamentos homossexuais. O referendo à nova Constituição será a 24 de fevereiro.
Sánchez leva na bagagem não apenas a intenção de reforçar os laços comercias mas também uma cadeira de madeira especial: a cadeira que pertenceu ao general cubano Antonio Maceo, considerado um dos heróis da independência, e tem as suas iniciais, assim como uma estrela da revolução pela independência.
A cadeira foi levada para Espanha pelo general Valeriano Weyler y Nicolau, que combateu contra Maceo (que morreu numa emboscada das tropas espanholas em dezembro de 1896). Nascido em Palma, Weyler trouxe para Maiorca a cadeira como despojo de guerra. Os seus herdeiros cederam a cadeira e o resto do seu património à câmara de Palma, sendo exposta no Museu Histórico Militar de San Carlos.
Há anos que as autoridades cubanas pedem a cedência da cadeira, havendo negociações para uma cedência temporal. Agora, Sánchez leva-a na sua bagagem, apesar dos protestos de última hora dos herdeiros do general espanhol. O problema é que, segundo o El Mundo, Sánchez leva-a sem garantias de que será devolvida, enquanto o Diario de Mallorca escreve que a cedência será por dois anos.