Quando a voz mágica de Nat King Cole, nos anos 50 do século passado, comparava um difícil amor à famosa obra de arte de Leonardo da Vinci, numa canção para a banda sonora do filme Captain Carey com direito a Óscar de Hollywood, já há muito que Mona Lisa (ou Gioconda) se tinha tornado objeto de culto para a cultura popular. Mona Lisa a rir, Mona Lisa a chorar, Mona Lisa de bigode, Mona Lisa careca, Mona Lisa empregada doméstica, Mona Lisa terrorista, Mona Lisa de Warhol, de Dalí, de Duchamp, dos Simpson, da Lego, da BMW... não haverá outra obra tão icónica e tão revisitada quanto o enigmático retrato da senhora Lisa del Giocondo. Nem alguém mais inspirador do que Da Vinci, cuja marca, quinhentos anos depois da sua morte, continua presente em coisas tão diversas como os anúncios que adoram brincar com as suas obras ou "um culto do pensamento transdisciplinar, que hoje volta a ser tão valorizado", diz Maria de Lurdes Craveiro, professora de História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra..A apropriação popular da obra de Leonardo pode ter conhecido um novo boomcom os gifs humorísticos da internet e das redes sociais, mas atravessou gerações e plataformas desde os tempos do próprio génio renascentista. Uma das primeiras abordagens satíricas a Mona Lisa que se conhecem é uma imagem da musa de Da Vinci a fumar cachimbo, autoria do ilustrador francês Arthur Spacek, por volta dos anos 1880. Spacek serviria de inspiração para a famosa "ousadia" do pintor dadaísta Marcel Duchamp, em 1919, que desenhou um bigode e uma barbicha numa réplica barata da Mona Lisa e lhe acrescentou como título a sigla L.H.O.O.Q. - que, lida em francês, resulta numa provocadora afirmação: "Elle a chaud au cul", algo como "Ela tem o rabo quente", o que motivou interpretações diversas, desde uma alusão à homossexualidade de Leonardo da Vinci até à crítica da alta burguesia parisiense da época..Depois disso, a Gioconda foi de Andy Warhol, o mestre da pop art que aproveitou a primeira exposição do quadro em Nova Iorque, em 1963, para criar uma série de serigrafias com múltiplas Mona Lisas - Thirty Are Better Than One - à semelhança do que tinha feito com Marylin Monroe ou com as latas de sopa Campbell. Foi de Salvador Dalí, que em 1954 pintou um autorretrato inspirado no quadro de Leonardo. Como foi de Basquiat, de Keith Haring ou de Banksy. "É um processo de transmissão contínua de um legado que se tornou património da humanidade", diz Maria de Lurdes Craveiro. "Leonardo era um homem muito especial que deixou um lastro vastíssimo e diversificado, não só nas artes como na ciência. Teve também o dom de criar alguns ícones, como a Mona Lisa, que foi sempre alvo de uma atenção muito especial, mas também a A Última Ceia ou o Homem Vitruviano. Quando um outro artista utiliza esses modelos referenciais, que facilmente são apreendidos e compreendidos pela cultura popular, o impacto é imediato." "As obras tornaram-se tão icónicas que ganharam popularidade. Não é preciso conhecer nada de arte para identificar a Mona Lisa e relacioná-la com Da Vinci, e vice-versa", refere, por sua vez, o publicitário João Gomes Almeida, CEO da consultora Buzziness. "É talvez a figura que sintetiza melhor essa capacidade dos génios em saltarem as fronteiras da erudição e tornarem-se figuras da cultura popular", reforça Steve Colmar, diretor criativo executivo da agência Leo Burnett..Mas os exemplos não se esgotam em Mona Lisa - cuja popularidade cresceu exponencialmente após o seu roubo do Louvre, em 1911. A Última Ceia é outro dos ícones sob apropriação coletiva, utilizado para uma miríade de recriações. Dalí e Warhol, por exemplo, mais uma vez não resistiram. E a mesa do repasto final de Cristo com os apóstolos já foi tantas e tantas vezes ocupada por outras personagens. Desde as criaturas de Alice no País das Maravilhas aos bonecos dos Simpsons, dos heróis da Marvel aos mendigos de Buñuel no filme Viridiana (1961), que levaram o Vaticano a condenar a blasfémia.. Em 1999, quando a série televisiva Os Sopranos começou a afirmar-se no espectro mediático também como uma das obras-primas do seu tempo, a reputada fotógrafa Annie Leibovitz encontrou no cenário de A Última Ceia a inspiração para uma fotografia com o elenco da série para a revista Vanity Fair. E do famoso quadro saiu também boa parte da trama que deu origem a um dos fenómenos culturais mais populares deste século xxi: O Código da Vinci - história ficcionada do escritor Dan Brown que explorava pistas escondidas nas obras do génio renascentista e alegava que o apóstolo João, à direita de Jesus em A Última Ceia, seria afinal Maria Madalena - vendeu mais de oitenta milhões de cópias por todo o mundo e deu origem também a um êxito de bilheteira no cinema, com Tom Hanks e Audrey Tautou. "A influência de Leonardo no imaginário coletivo popular é tão grande que se torna fascinante pegar em obras suas e criar metáforas. Ainda para mais tem esse dom de contemporaneidade. Quintentos anos depois, está tudo atual", realça Steve Colmar, da agência Leo Burnett. A ideia é partilhada por João Gomes Almeida, que destaca o facto de "o universo Da Vinci proporcionar uma grande facilidade de assimilação para o consumidor" e dá um exemplo, de entre tantos que a publicidade tem para dar: "Um anúncio da Lego que não precisa sequer de mostrar a obra de forma nítida. É uma construção de um quadro que surge desfocada, mas pelo sombreado identifica-se perfeitamente como sendo a Mona Lisa..A presença de Leonardo na cultura popular oferece um vasto potencial para o pensamento artístico, seja na literatura, artes plásticas, música, cinema ou televisão. Quem não se lembra das Tartarugas Ninja, com Leonardo como o mais velho e líder de um grupo de tartarugas super-heróis inspiradas nos mestres renascentistas: Leonardo, Raphael, Michelangelo e Donatello? Bem antes disso, num episódio da saga de ficção científica Star Trek, em 1969, Leonardo da Vinci era apresentado como uma das muitas identidades de Flint, um homem imortal nascido mais de três mil anos antes de Cristo. Depois, em 2010, um episódio da série de animação Futurama, The Duh-Vinci Code, revelava Leonardo como um alien do Planeta Vinci, habitado por brilhantes intelectuais de aparência humana, onde ele seria o menos inteligente de todos os habitantes. A multidisciplinaridade do legado de Leonardo - o verdadeiro "génio dos sete ofícios" que, lembra Maria de Lurdes Craveiro, "apesar de parecer ainda hoje muito à frente do seu tempo, era na verdade um homem do seu tempo, o mais genial produto de um ideal renascentista do homem completo" - reflete-se também nas ciências, na engenharia, na moda ou até na culinária. Mais exemplos? Em 2013, o chef João Sá promoveu um menu de recriações das notas de Cozinha de Leonardo da Vinci. Em 2001, na Noruega, foi inaugurada uma ponte idealizada pelo génio italiano 500 anos antes: a ponte Golden Horn, pensada então para a cidade de Constantinopla, atual Istambul, na Turquia, mas muito avançada para os construtores da época. Em 2012, a casa italiana de moda Gherardini - de uma família histórica de Florença cuja linhagem inclui uma tal de Minha Senhora (Mona) Lisa Gherardini - produziu uma bolsa de mão desenhada por Leonardo e descoberta num dos seus códigos, com cada um dos 99 exemplares de uma edição limitada posto à venda por mais de 2500 euros. "Um génio que saltou fronteiras de classes ou áreas do saber. Uma figura tão popular quanto transdisciplinar", diz Maria de Lurdes Craveiro. O filão é inesgotável e Da Vinci continuará a ser figura obrigatoriamente presente na cultura popular. "A vida dele é um exemplo inspirador de como é possível reinventar-se sempre. E a sua obra tem esse magnetismo que convida à recriação", descreve Steve Colmar. "Da Vinci é intemporal. Vai ser sempre usado e revisitado", resume João Gomes Almeida.