UM IDEALISTA NA REALIDADE
Hoje, pelo menos nas democracias estabilizadas, os políticos em desgraça perante o soberano - que é colectivo, o povo - já não são decapitados. Apenas mandados para casa. Mesmo assim, o exemplo de Thomas More - S. Thomas More - mantém a sua actualidade. Conhecido principalmente pelo desfecho da sua vida - decapitado em 1535 por ordem de Henrique VIII -, ficou na memória de todos como exemplo de integridade moral que o levou ao martírio e à santidade.
Descrito por Erasmo como um homem "faminto de liberdade", polifacetado, desenvolve inúmeras actividades em áreas muito diferentes: lê, viaja, escreve, constitui e cria uma família marcada pela excepcionalidade e exerce a política activa, desempenhando inúmeros cargos da maior importância: juiz de Londres, presidente da Câmara dos Comuns, ministro da Justiça e lorde chanceler do Reino.
Idealista e realista. Toda a sua acção é marcada pela necessidade de fazer a síntese entre o velho e o novo, entre o real e o ideal. A Utopia - literalmente, em nenhum lugar - permitiu-lhe balizar um mais-além de perfeição inexistente que desse sentido a esta caminhada que é a vida, produzindo uma espécie de energia e permitindo medir a distância entre o possível e o tendencialmente alcançável. E é por isso que sem qualquer contradição Thomas More foi de facto um político marcado pelo realismo, procurando no desempenho dos seus cargos conseguir as pequenas grandes coisas que melhoram a vida dos homens e se traduzem na paz possível e indispensável ao progresso: aperfeiçoar o funcionamento dos tribunais, recuperar o atraso dos processos, aumentar a rapidez dos veredictos, tomar iniciativas legislativas orientadas pelo senso comum e pela eficácia, responder às necessidades dos cidadãos. A sua consciência nunca representou uma obstinação ou um heroísmo arbitrário: usou da manha sagrada da serpente mas preparou-se sempre para a eventualidade da renúncia máxima.
As sociedades modernas, ao privilegiarem o pragmatismo puro e o imediatismo, parecem ter colocado esse político activo e realista que foi Thomas More na prateleira dos exemplos louváveis mais impossíveis. Em contrapartida, verificamos entre nós o uso abusivo de Maquiavel (do maquiavelismo e do maquiavélico), abusivo desde logo porque poucos o leram e ainda menos o estudaram. A referência em que Maquiavel se tornou - símbolo indevido do político manhoso, habilidoso e bem sucedido - assenta num conceito cada vez mais esvaziado e deprimente da acção política, vista já não como um combate claro de valores e ideias no quadro morno da nossa organizada partidocracia, mas como uma sucessão de habilidades práticas, alianças e negócios ou pura capacidade de conspirar melhor.
Maquiavel escreveu, citando Cosme de Médicis, que os Estados não podem ser governados com "pais-nossos", mas também escreveu que sem religião (aqui no sentido de um quadro de valores universais) os Estados cairiam na ruína. Alguma pobreza da prática política actual, a complexidade crescente dos problemas reais que afligem os cidadãos e o evidente distanciamento destes do poder político - a que se soma o efeito de filtro inerente às sociedades de comunicação - vão obrigar necessariamente ao regresso às ideias.
O colocar de novo as ideias no topo da agenda política terá duas consequências: a reivindicação, pelos diferentes grupos, de espaços ideológicos diferenciados e a capacidade prática de mediação entre o mundo real e o mundo ideal. O político passa assim a ser, antes de mais, um mediador entre as condições concretas - necessidades a serem satisfeitas, interesses sociais e ambições humanas a serem ordenadas e promovidas, serviços e respostas eficazes a serem prestadas - e os ideais - o bem possível - que constituem a dimensão da esperança e a legitimação do desenvolvimento. Se assim for, Maquiavel vai ficar agradecido, e seria bom ressuscitar Thomas More em cursos de reciclagem acelerada.