Um homem mecânico numa cidade mística

A Juventus deu-se esse nome, porquê? Porque a juventude não inveja, mas todos a invejam. Que Cristiano Ronaldo a tenha escolhido no seu ocaso, é um belo desafio para seguirmos. Não é o clube da cidade, esse é o Torino, mas a Juve é o clube da Itália no mundo. O tamanho da Juventus é universal, como o seu novo recruta
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Uma das consequências das guerras é ficarmos a saber mais de geografia e é assim que uma ou outra violação de fronteiras nos fez entrar em casa a Crimeia, a síria Racca e o Afeganistão. Mas o futebol vai mais longe e o simples mudar de contrato de um dos nossos heróis leva-nos a conhecer não só novos nomes do planeta mas também alguns peculiares costumes. Graças a Cristiano Ronaldo, o futebolista, neste sábado já soubemos que na maior das competições italianas, a fabulosa Serie A, há um clube de Chievo, um sítio tão povoado como a freguesia de Água de Pau, na ilha de São Miguel, quatro mil habitantes.

Graças a Cristiano Ronaldo, que defrontou várias vezes o Rayo Vallecano, já sabíamos haver o bairro madrileno Vallecas, mas este é um mundo, 300 mil habitantes. Ontem, de Chievo, pequeno detalhe no mapa-múndi, veio o primeiro resultado de CR7 no campeonato italiano. Talvez venhamos a saber ao longo desta época que Chievo é um bairro periférico da Verona que é a terra natal de Romeu e Julieta, onde Shakespeare pôs em jogo os Montecchi contra os Capuleti, lugar, pois, muito competitivo e dramático.

Chievo tem duas torres sineiras, uma medieval e outra recente, que dão concertos campanários de dez sinos. O concerto anual foi inventado pelo antigo padre da freguesia Silvio Venturi, que também relançou o clube, dando-lhe um campo. Em 2001, o Chievo chegou à Série A e, tirando uma época, nunca mais a largou até ontem, quando foi o lugar mais famoso do futebol mundial graças ao nosso badalado patrício e à sua sina de atrair as atenções gerais. É assim que um dia destes iremos conhecer Sassuolo que também é um clube da Série A e, sim (vá, leitor, confesse, não sabia), é uma cidade italiana. O futebol educa.

Evidentemente, o lugar que mais ficaremos a conhecer graças ao atual voo do nosso madeirense preferido é Turim. A cidade da planície do rio Pó para onde foi viver o rei dos relvados. E vejam o tanto que nos diz ele ter ido para um clube cujo nome não leva estampado o da cidade. Nessa Itália onde há a Roma em Roma, a Fiorentina em Florença e o Milan em Milão. Cristiano Ronaldo, como nenhum chinês o ignora, está na Juventus. Não o clube da cidade, esse é o Torino, mas o clube da Itália no mundo.

O tamanho da Juventus é universal, como o seu novo recruta. E nem tanto por o clube ir já no sétimo campeonato ganho de seguida e ter quase o dobro de scudetti (campeonatos) dos seus adversários mais próximos. Mas porque a Juve (como se dizia de La Callas, La Diva, as dos pronomes definidos e definitivos), a Juve, é outra coisa, além de clube. Disse Giampiero Boniperti, ex-jogador e ex-dirigente: "Na Juventus, vencer não é importante, é a única coisa que importa."

Empresta-se a Palmiro Togliatti, antigo secretário-geral do PCI, um dos maiores partidos comunistas ocidentais, este aviso a um camarada: "Cos"ha fatto ieri, la Juve? Tu queres fazer a revolução sem saber o resultado de ontem da Juve?!" Togliatti (1893-1964) talvez tenha começado a aproximar-se da democracia burguesa nas bancadas do estádio - há foto juntos, em 1948, dele e do presidente da Juventus Gianni Agnelli, da família patroa da Fiat.

Uma palavra fundamental para percebermos a nova morada de Cristiano Ronaldo está dada, Fiat: a da Turim de ruas ortogonais, dedicada ao culto do automóvel. Os clubes italianos, já o dissemos, são citadinos e regionais. Exceto a Juventus, por causa dos milhares e milhares de camponeses que, por décadas, subiram a bota, da Sicília, da Campânia sulista e das cidades adriáticas até às linhas de montagem da Fiat. Operários e futebolistas, o mesmo patrão. A Juventus vai aos estádios de Roma e de Nápoles e os seus tifosi locais disputam em igualdade com os do clube local. Não acontece com Milan, Inter, Roma, Lazio, Torino, Fiorentina - fora de casa, uns órfãos.

Ainda no nome do clube, Juventus, tanta explicação. Em 1897, o clube foi fundado no melhor liceu da cidade. Por lá passaram alunos ricos, os Agnelli, e futuros intelectuais de prestígio, os escritores Primo Levi e Cesare Pavese, o filósofo Norberto Bobbio... Como se lê pelo nome que se deu, a Juventus nasceu ambiciosa. Não ancoraram o nome à cidade porque queriam mais do que ela. E juventude (em latim iuventus, o jota é da grafia piemontesa, do sopé dos Alpes), Juventus, porquê? Porque a juventude não inveja, mas todos a invejam. Que Cristiano Ronaldo a tenha escolhido no seu ocaso, é um belo desafio a seguirmos.

Num texto deste caderno 1864, o cronista Rogério Casanova diz do protagonista da semana: "Cristiano Ronaldo, de todos os grandes jogadores, é talvez o menos espontâneo (...) não há nele nenhum mistério que não pareça mecânico." De facto, Cristiano explica-se por Ronaldo (e vice-versa), não pelo dedo de Deus ou de um qualquer milagre. Ele é vontade humana e ginásio. E, lá está, então que foi fazer para Turim, mística, da magia negra e da alquimia? A cidade não pode ser vivida descrendo do seu lado esotérico. Turim, a da Catedral do Santo Sudário, a da Basílica Superga e a sua desgraça, e a da Praça Statuto, com a sua estátua ao diabo...

A estátua até podia ser um piscar de olho ao CR7. O génio alado, no pináculo, com os seus peitorais fortes como os de um goleador que arranca a camisola e com as vestes puxadas para cima mostrando os músculos das coxas, fazem lembrar o recém-chegado. Oficialmente, a estátua é sobre uma vitória da Turim laboriosa: homenageia a abertura do túnel pelas montanhas do norte, levando os produtos industriais da cidade pela Europa fora. Mas há também quem diga que é Lúcifer que ali está. E como pensar que o diabo não anda por Turim?

A 3 de maio de 1949, o Benfica fez uma festa de despedida ao seu capitão Francisco Ferreira. Convidou o Torino, era então o Grande Torino, tetracampeão, a caminho do quinto scudetto, e com nove titulares na seleção italiana de então. O jogo: 4-3 para a pequeníssima história. O Torino regressou de avião. Na tarde de 4, o piloto Meroni apontou o trimotor Fiat ao aproximar-se do aeródromo, mas havia nevoeiro. Chocou na colina onde se erguia a Basílica de Superga. Não houve sobreviventes. Com o avanço que levava, o Torino, recorrendo aos juniores, ainda foi campeão. Mas levou décadas a voltar a ter uma boa equipa e só ganhou, até hoje, um outro scudetto.

Entretanto, a mais infeliz das equipas ainda teve alguns fogachos. Por exemplo, Gigi Meroni (olha, coincidência, tinha o nome do piloto do desastre...), um extremo que fintava que era uma delícia e tinha cabelos à Beatle. O que um Meroni tirara, outro dava alguma esperança. No outono de 1967, depois do jogo em casa, Meroni saiu do estádio a pé e atravessou a estrada. Um rapaz de 19 anos, com carta acabada de tirar, atropelou o extremo e ele morreu. A igreja proibiu o enterro religioso porque Gigi era concubino de uma mulher casada. O rapaz do carro assassino chamava-se Attilio Romero, foi porta-voz da Fiat e presidente... do Torino, em 2000. Em Turim, que los hay, diabos, los hay.

Isto é contado na esperança de que Cristiano Ronaldo se dê conta de que chegou a uma cidade esquisita. E a um clube, a Juventus, muito exquis, que em francês não é o que de imediato parece, mas quer dizer requintado. Antes de Cristiano Ronaldo, enormes jogadores pousaram ali. Gianni Agnelli, L"Avvocato, Il Signore della Signoria della Signora, um renascentista, belo como ator italiano, patrão da Fiat e da Juventus, com um ar de soberba que se aceitava, porque ele era soberbo, comentou assim a compra de Platini, no anos 1980: "Comprámo-lo como a um bocado de pão, depois ele pôs-lhe em cima foie gras." Disso, eles gostam, na Juventus.

Cristiano Ronaldo vai ter de saber que o seu extraordinário pontapé de bicicleta - neste ano, ainda pelo Real Madrid, contra a sua equipa de agora e no campo desta - não foi nada comparado com a soberba que a Juventus se olha ao espelho. Pontapé de bicicleta - rovesciata, em italiano - homologado pela Vecchia Signora, continua a ser o de Carlo Parola, jogador, evidentemente, da Juventus.

Aconteceu em 1950, jogava-se contra a Fiorentina e Parola elevou-se para fazer a rovesciata da eternidade. Deu jeito ainda serem raras as filmagens de futebol. Permanece com uma foto na memória dos tifosi, nos cromos Panini e até nos selos italianos. Carlo Parola vai subindo, subindo, até tornar o seu gesto imortal. Mas há um porém: o pontapé de bicicleta de Cristiano Ronaldo foi alturas, com precisão e golo. Já o do defesa Carlo Parola foi um simples desviar de bola: quem procurava fazer golo era o adversário... Mas vá lá desfazer a soberba da Juve!

O problema é que ela já nos convenceu, ao mundo, que nos convence. Em 1999, a Juventus fez uma contratação incrível: o irlandês Ronnie O"Brian, 19 anos, que até lá andara por secundários clubes britânicos. A honra da compra esquentou a cabeça da Irlanda. Numa sondagem internacional sobre grandes jogadores da história (o virar do milénio propiciava esses inquéritos) pôs o voto dos irlandeses a catapultar Ronnie para "o melhor futebolista de sempre". Como o futebol é ciência de conhecimento comum, aquela classificação caiu no ridículo.

Logo a seguir, a revista americana Time quis conhecer quem era o Homem do Século. A revista teve de apagar as votações em Ronnie O"Brian já ele estava acima de Albert Einstein. Pouco depois, o irlandês estava a jogar no Lecco, da terceira divisão italiana. O que quer dizer que Cristiano Ronaldo, para nos ensinar coisas raras italianas, vai ter de se esforçar mais do que nos apresentar o Chievo.

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