Um homem honrado
1 Este país está habituado a invejar os vivos e homenagear os mortos. É um país normalmente ocupado com polémicas pessoais, mas quase sempre ignorando os caminhos que toma. Um país assim é um país que fala mas não diz nada, ouve mas não pensa. E, sem pensar, não aprende nem progride.
José da Silva Lopes não é daqueles tribunos muito seguros da sua profunda sabedoria. Nem está entre os que, convictos da sua justeza moral, são prolíficos no seu juízo. Não inveja ninguém, logo nunca foi invejado. Talvez por isso, o país não esperou para lhe render a justa homenagem.
Silva Lopes é uma figura ímpar da nossa sociedade. Das raras personalidades que reúnem unanimidade à sua volta. Não por ser daqueles que não correm riscos e a todo o custo evitam comprometer-se. Mas por os seus compromissos estarem firmados em deliberações de vida e alicerçados na fé.
A vida de um persistente, com uma longa e permanente dedicação às causas nacionais. A fé do pessimista, de quem carrega sempre no "pior de Portugal" mas alimenta a eterna esperança de que Portugal se faça melhor.
Silva Lopes é uma referência, porque é um homem íntegro. Numa época em que empobrecemos com a crise económica, sofremos com a crise social e andamos atordoados com a degradação da vida política, é muito reconfortante saber que existem pessoas assim.
Mesmo quando ele alerta para o risco que vivemos, nesta sucessão de atos desorientados. Mesmo quando parece resignado a este modo de vida frágil. Ou mesmo quando o ouvimos dizer "não sei como vamos sair desta situação".
Mas Silva Lopes, sem se aperceber, dá-nos a esperança e o exemplo. O exemplo de quem consegue discernir no meio de tanta retórica sobre assuntos de nada. A esperança de que é possível alterar comportamentos. E de que os exercícios de vaidade humana nem são um modo de vida nem fatais como o destino.
Deve-se ouvir, perante o grau de complexidade dos nossos problemas, quem tem a humildade de reconhecer que não tem respostas. Mas é capaz de ponderar, estudar afincadamente e discriminar com alternativas.
Só assim, com o coração à esquerda, consegue pedir contenção salarial para os trabalhadores. Porque pensava nos futuros desempregados.
Só assim um homem que participou ativamente nas nacionalizações pós-revolucionárias consegue hoje revelar-se perplexo com a morte da concorrência, arrastada pela recente vaga pró-monopólios, feita em nome dos campeões nacionais.
Em qualquer um de nós, isto seria incoerência. Em Silva Lopes é integridade. Ele sabe, todos temos a noção, que o país não sabe para onde vai. O que ele quer dizer, e todos o reconhecem, é que faltam lideranças. Por isso protesta e exige. Mete o dedo na ferida. E nem imagina como se entende o alcance do seu apelo.
2 Seria impossível passar quase duas décadas no jornalismo económico sem me cruzar com ele. O meu privilégio foi, porém, ainda maior. Convivi, fiquei perto, questionei, aprendi, nada de intimidades, mas a proximidade suficiente para conhecer o homem, a alma grande que aquele ar sisudo escondia. Sem dissimulações.
A Silva Lopes não dedico um obituário, porque esse ritual é demasiado vulgar para quem abominava a vulgaridade: "Leio sempre aquele homem, todas as semanas, é um tratado, aprendo sempre coisas novas com ele", disse--me um dia, já lá vão uns bons anos. O homem era Martin Wolf, colunista do Financial Times, não era um simples colunista, mas a simplicidade revelada por aquele seu leitor tão especial, admirador até, era absolutamente desconcertante.
Um ex-ministro das Finanças, um ex-banqueiro central, um homem de Estado, a dizer que aprendia com um jornalista!!! Silva, o keynesiano, Martin, um inequívoco liberal. Não há espaço para a vulgaridade quando simplicidade e honestidade se encontram. Na verdade, a ideologia de Silva Lopes era a própria verdade. Por isso o respeito unânime. Por isso o reconhecimento em uníssono da sua inquestionável grandeza moral e intelectual.
Dos momentos que jamais esquecerei, um resume a melhor metáfora sobre Silva Lopes - ou, melhor dizendo, sobre a forma como todos o víamos e respeitávamos. No Parlamento, ele deputado eleito pelo PRD de Eanes, Cadilhe na bancada do governo a defender a sua proposta de Orçamento do Estado, salvo erro de 1987, auge do cavaquismo. Silva Lopes pede a palavra, ergue-se e em cinco minutos de pé desfaz parte das bases técnicas que sustentavam a política orçamental do ano seguinte: "Tem toda a razão, senhor professor, não tinha percebido essas lacunas que o senhor deputado detetou e vamos já corrigir isso."
Cito de memória. Mas o diálogo, raro, nela, ficou até hoje aqui cravado. E naquele governo, especialmente naquele ministro, a humildade não era a maior virtude. Aqui, também não será a minha. Guardo só para mim o telefonema que ele me fez na manhã em que publiquei o editorial no Jornal de Negócios, dia 26 de maio de 2003, a propósito da homenagem que o ISEG lhe rendeu. Mas partilho com os leitores do DN o que então escrevi: é o primeiro bloco do texto de hoje, todo o ponto 1, ipsis verbis.
Por ser uma figura ímpar da nossa sociedade. Por não saber como iríamos sair daquela situação. Por continuarmos ainda hoje à espera de que alguém aponte o caminho.