Um homem das arábias

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Vieram de longe, trazidas de toda a parte. Chegaram da Rússia, do Brasil distante, eram muitas, tantas, o pessoal do hotel nunca vira nada assim. 150 modelos belíssimas, escolhidas criteriosamente nos quatro cantos do mundo, viajaram durante dias até à capital das Maldivas, era Julho de 2015. Daí, diversas avionetas levaram-nas discretamente até um lugar remoto, uma ilha privada, Velaa, um dos resorts de luxo mais exclusivos do planeta, um pedaço de terra minúsculo no meio do azul-turquesa do Oceano Índico.

Aí chegadas, as 150 beldades fizeram testes médicos para despiste de doenças sexualmente transmissíveis e só então foram instaladas nas várias villas edificadas nas águas, sobre uma barreira de coral, com o piso em vidro, para que em baixo se possam ver tartarugas, peixes de todas as cores, a areia branca finíssima. Só depois chegariam os homens, doze apenas, para uma festa que deveria durar vários dias, abrilhantada por Pitbull, um rapper famoso trazido de Miami, pela estrela pop coreana Psy e por um dos DJ mais populares do mundo, Afrojack, vindo da Holanda, além das cantoras Jennifer Lopez, Shakira e Rihanna. Aos empregados, mais de 300, muitos dos quais formados no distinto International Institute of Modern Butlers, foram dados bónus astronómicos, com a condição de manterem a privacidade total, o que implicava, entre o mais, estarem proibidos de levar smartphones e máquinas fotográficas para a ilha paradisíaca.

Entre as 150 modelos e os 300 empregados, além do séquito trazido da Arábia, mais de 500 pessoas serviam um homem e os seus doze convidados, a maioria dos quais passavam o dia fechados nas suas villas, e só ao anoitecer despertavam para festas que duravam até de madrugada. Nem chegou a uma semana: ao fim de alguns dias, uma fuga de informação acabou por cair nas mãos dos iranianos, que espalharam a notícia da festa escandalosa pelas redes sociais. Os convidados e o seu séquito abandonaram o local às pressas, tão discretamente quanto tinham chegado, e só dias depois as modelos regressaram aos seus países de origem. Terminava assim abruptamente uma orgia organizada por um príncipe para os seus amigos, com um custo estimado de mais de 50 milhões de dólares. Repito: mais de 50 milhões.

O episódio é bem o retrato da Arábia Saudita de Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro e líder de facto do país, dado que seu pai, o rei Salman bin Abdulaziz Al Saud, tem 86 anos e está gravemente enfermo de Alzheimer. A Arábia de Mohammed bin Salman (conhecido apenas pelas iniciais, MBS) é um dos territórios mais ricos do mundo, com as segundas maiores reservas de petróleo e as sextas maiores reservas de gás do planeta. É o segundo maior produtor de petróleo do mundo, a seguir aos Estados Unidos, e o maior exportador de crude, fazendo de MBS um homem fabulosamente rico (a fortuna da família real saudita é estimada em 1,4 triliões de dólares, 16 vezes a da realeza britânica). A Arábia Saudita é também um dos países mais jovens do mundo - cerca de metade da sua população de 34 milhões de habitantes tem menos de 25 anos - e também, note-se, um país que gasta 8% do PIB em defesa, a segunda maior percentagem do mundo em gastos militares relativamente ao Produto Interno Bruto, só superada por Omã. Durante vários anos, de 2015 a 2019, a Arábia foi o maior importador de armamento americano do mundo e tem, ainda hoje, o 28.º exército mais bem equipado do planeta.

Quando organizou a festa milionária nas Maldivas, uma de muitas, MBS ainda não completara o seu plano de domínio hegemónico da vida política saudita, um emaranhado de jogos de poder que envolvem mais de sete mil príncipes, uma corrupção tremenda, sequestros e assassinatos, relações nem sempre fáceis com as autoridades religiosas ultraconservadoras. Na altura, o título de príncipe herdeiro fora assumido brevemente, durante escassos três meses, por Muqrin bin Abdulaziz, a quem sucedeu Muhammad bin Nayef, um homem poderoso, com fortes ligações aos serviços secretos americanos. Em Junho de 2017, através de um golpe palaciano urdido ao milímetro, digno de um drama de Shakespeare, MBS conseguiu defenestrar bin Nayef, o qual acabou preso e acusado de traição em Março do ano passado (além de ter sido alvo de quatro tentativas de assassinato, uma das quais muito grave). Deste modo, MBS tem hoje um poderio nunca visto na história da Arábia Saudita, incluindo os tempos dos monarcas mais despóticos. No Ocidente, teimamos em ignorar e em não perceber o que se passa: falamos de Orbán e de Lukashenko, de Kaczyński e de Bolsonaro, sem nos darmos conta de que os humores e as decisões de MBS têm um impacto muito superior e mais directo nas nossas vidas.

Desde logo, porque vivemos na dependência do petróleo, cujos preços a Arábia Saudita faz subir ou descer consoante a sua conveniência e interesses (ainda há dias, a 5 de Novembro, MBS ignorou os apelos de Biden e decidiu manter os preços do crude em alta, o que tem e terá um impacto profundo em toda a economia mundial). Depois, porque na Arábia Saudita não há separação de poderes, democracia ou regras de Estado de direito: o país é governado como uma coutada privada da Casa de Saud, agindo o rei - neste caso, o príncipe herdeiro - como monarca absoluto, sem limite algum. A Arábia Saudita é, juntamente com o Vaticano, um dos dois únicos Estados do mundo onde não existe um parlamento com poderes legislativos. Até aqui, as lutas surdas entre os vários príncipes e suas facções asseguravam um bizarro e mínimo equilíbrio de poder, mas com MBS tudo isso acabou.

Enquanto olhávamos para a América de Trump ou o Brasil de Bolsonaro, líderes efémeros e democráticos (ainda que não democratas...), ocorreu no Médio Oriente uma revolução silenciosa, implacável e letal, que concentrou nas mãos de um só homem um poder absurdo, até hoje nunca visto. Outra agravante: enquanto os autocratas ocidentais terão, apesar de tudo, mandatos limitados, MBS é jovem, tem 36 anos, e a autoridade que alcançou garante-lhe que se perpetuará no poder por décadas, salvo se ocorrer algum imprevisto de maior.

Em 2017, num golpe audacioso e fulgurante, MBS sequestrou no Ritz-Carlton de Riade 500 príncipes e altos funcionários - no fundo, toda a elite do país -, muitos dos quais foram torturados, ameaçados, perderam as suas gigantescas fortunas, tiveram de devolver uma quantia astronómica de 400 biliões de dólares, alegadamente desviada do erário público. Na aparência, tratou-se de uma purga anticorrupção; na prática, foi o passo final na consolidação do poder de um homem que actua de forma vertiginosa, a um ritmo que, em poucos anos, tem abalado o mundo com sucessivos casos de gravidade extrema: intervenções militares na Síria e no Iémen, com subsequente desastre humanitário; criação do "Esquadrão Tigre", uma força de 50 esbirros para assassinatos selectivos em todo o planeta, destacando-se o homicídio e desmembramento do cadáver do jornalista Jamal Kashoggi no consulado saudita de Istambul, em Outubro de 2018; ruptura das relações com o Qatar, desencadeando entre os dois países a maior ciberguerra de que há memória na história da Internet; sequestro do primeiro-ministro do Líbano, Saad Hariri; brutal conflito diplomático com o Canadá, com expulsão do embaixador em Riade e congelamento das relações comerciais; aberta tensão com a Turquia - são alguns de muitos casos do breve reinado, cujo retrato foi feito num livro extraordinário, saído há pouco, Blood and Oil. Mohammed Bin Salman"s Ruthless Quest for Global Power, Bradley Hope e Justin Scheck. Leiam-no, é assombroso.

Astuto como poucos, MBS pretendeu surgir com aura de reformista, permitindo que as mulheres conduzissem automóveis, limitando a acção da polícia religiosa, abrindo o país ao turismo, mas logo tudo se esfumou e, ao fim de poucos anos, as ONG de direitos humanos consideram que a situação nunca esteve tão má, sucedendo notícias de prisões e tortura de defensoras dos direitos femininos, perseguições brutais a opositores, execuções em massa, como a decapitação simultânea de 37 presos, cujos cadáveres ficaram expostos como lição para potenciais rebeldes. Enquanto isso, MBS pratica gestos grandiosos de enorme impacto, visando projectar globalmente o seu poder: em 2015, no mesmo ano da orgia nas Maldivas, comprou um iate gigantesco (152 metros!) a um oligarca russo, o Serene, por 500 milhões dólares, e, logo a seguir, o Chateau Louis XIV, em França, por mais de 300 milhões, à época a casa mais cara do mundo.

Muito provavelmente, a ele se deve também a aquisição, em Dezembro de 2017, de Salvator Mundi, óleo atribuído a Da Vinci, por mais de 450 milhões de dólares, um recorde absoluto. Em Junho de 2016, passou uma larga temporada na Califórnia, encontrando-se em Sillicon Valley com Mark Zuckerberg, e regressando mais tarde à América para se avistar com tudo e todos: o presidente Trump, seu grande aliado (a primeira visita oficial de Trump como presidente foi ao reino saudita), o casal Clinton, Henry Kissinger, Bush pai e filho, Bill Gates, Jeff Bezos, Rupert Murdoch, Richard Branson, além de estrelas como Oprah Winfrey, Michael Douglas, Morgan Freeman ou Dwayne Johnson. Não consta que alguém lhe tenha perguntado sobre o estado dos direitos humanos na Arábia Saudita e, não muito depois, a imagem do jovem príncipe foi maculada pelas notícias sobre uma alegada tentativa de hacking ao telemóvel pessoal de Bezos.

MBS já intuiu que o petróleo tem os dias contados e será fatal para a Arábia continuar a manter a economia tão dependente de reservas finitas. Daí o seu ambicioso programa, a Visão 2030, bem como o projecto megalómano, orçado em 500 biliões, de construir uma cidade no Mar Vermelho, Neom, totalmente servida por robôs. Contudo, e como bem mostra Blood and Oil, não tem sido fácil atrair investidores estrangeiros aos sonhos grandiosos do príncipe: os que o procuram querem o seu dinheiro, não colocar dinheiro próprio naquelas mãos sujas de sangue. Por isso, as viagens que MBS faz pela América ou pelo Oriente em busca de fundos têm sempre o efeito contrário ao pretendido, o que irá hipotecar para sempre o futuro saudita: ao invés de captar investimento, MBS acaba a investir quantias astronómicas em empresas como a Uber, a Google, a Microsoft, a Disney, a Starbucks e, há pouco, o Newcastle, que de um dia para o outro se tornou o clube de futebol mais rico do mundo. Como recorda Peter Frankopan num livro impressionante, As Novas Rotas da Seda, há um facto singelo mas muito expressivo do declínio ocidental: actualmente, nenhum dos grandes clubes históricos da Europa está nas mãos de europeus. Devíamos lembrar-nos disso. E, sobretudo, devíamos perceber que só deixaremos de estar à mercê de um tirano sanguinário como MBS no dia em que reduzirmos a nossa dependência dos combustíveis fósseis. O planeta agradece, de resto, não sendo por acaso que a Arábia tudo tem feito para sabotar os acordos sobre as emissões de carbono. Por mais campanhas que se façam em prol dos direitos humanos, o regime de MBS nunca mudará enquanto dependermos do seu petróleo. Energias alternativas, redução de consumos energéticos, uso de transportes públicos ou bicicletas não são apenas medidas para proteger a Terra e o clima. São formas de defesa da democracia e da liberdade, de salvaguarda dos direitos fundamentais da pessoa humana. Devíamos lembrar-nos disso - antes que seja tarde.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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