Um herói muito relutante

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Um herói muito relutante

"Estão a concentrar tudo em mim mas foi um trabalho de equipa", diz

Podia ser uma manhã como as outras, num dia como os outros - como os outros desde 4 de Janeiro, bem entendido. Foi quando Jorge Marques chegou a Díli , depois de dois dias de viagem. Uma semana para habituar o corpo às nove horas de diferença e ao calor, muito calor, e muito húmido, de Timor. Para um alentejano como ele, explica, o calor não faz diferença. A humidade sim - "Custa muito a fazer tudo, nos primeiros dias. E o jet lag é terrível... Levamos umas boas duas semanas a habituar-nos." Isso já lá ia, felizmente, a 11 de Fevereiro, segunda-feira, sete da manhã, quando uma comunicação para o quartel da GNR, onde este enfermeiro do Instituto Nacional de Emergência Médica está 24 horas sobre 24 horas em prevenção, alerta para "uma troca de tiros na Areia Branca". A Areia Branca é uma praia onde Jorge Marques já foi com alguns membros do contingente. Uma praia junto à casa do presidente de Timor, José Ramos-Horta.

O resto é já história - daquela que às vezes aparece com agá grande. É por esse motivo que no meio da conversa o enfermeiro de 38 anos, que desde Dezembro de 1990 trabalha no hospital de Portalegre (agora renomeado "Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano"), faz alto. "Há uma coisa que me tem incomodado um bocadinho. Estão a concentrar as atenções todas em mim e tudo isto resultou de um trabalho de equipa, só com esse trabalho é que se conseguiu socorrer o presidente. Se vai escrever sobre isto e fazer um artigo grande, queria que frisasse esse aspecto."

A lealdade ao colectivo rima com a admiração pelo "espírito de grupo" do subagrupamento presente em Timor, uma das coisas que Jorge Marques guarda mais intensamente desta experiência. Isso e a realidade que encontrou nos campos de refugiados de Becora, Comoro e Metinaro, onde a GNR tem "um plano de assistência". "Nunca me tinha deparado com isto, uma pessoa demora um bocadinho a habituar-se. Encontramos lá o pessoas com muitas doenças infecciosas e muitas lesões associadas às condições em que vivem... Malária, dengue, feridas, úlceras na pele." Muitas pessoas, metade delas crianças, a viver em péssimas condições. "Não faço ideia dos números concretos, duvido que alguém os tenha. A situação não é tão boa como nós, portugueses, desejávamos. É um povo que necessita de muita coisa ainda até ficar em condições de tomar conta de si, que está a começar a procurar o caminho da sua organização democrática."

Apesar do choque causado pela realidade dos campos, não esperava encontrar uma situação muito diferente. "Já tinha alguma informação, de pessoas dos bombeiros que tinham cá estado." Mas confessa nunca ter esperado algo como aquilo em que esteve envolvido na manhã de 11. "A minha opinião é a de um leigo, mas muito francamente nada me fazia prever que houvesse uma situação destas. Uma coisa com esta violência sobre dois símbolos do Estado não esperava." Assume "uma certa amargura, algum desalento". Afinal, como a maioria dos portugueses, Jorge Marques torceu apaixonadamente por Timor durante anos - e durante o decisivo processo de 1999.

Convidado pelo INEM para participar na missão - não há voluntários nestas situações, mas convites efectuados pela instituição a quem reúne as condições necessárias, e Jorge Marques, fazendo parte da equipa da viatura médica de Portalegre, era um candidato adequado -, aceitou no mesmo dia. "Só não disse logo que sim porque tinha de falar com a minha família". As saudades da mulher e "das duas crianças muito pequenas" apertam e tão depressa não se vê a largá-las. "Daqui a uns tempos, desde que não seja muito em breve, voltaria com gosto. Mas primeiro tenho de matar as saudades..."

De regresso marcado para 20 de Fevereiro, com os outros membros da equipa do INEM, a médica de Penafiel Fátima Santos e o técnico de emergência médica do Porto Márcio Moreira, Jorge Marques leva também na bagagem uns rudimento de tétum - e algum desembaraço no tetunhol que faz a ponte entre portugueses e timorenses. E a memória da "adoração pela bandeira portuguesa" de que ali a maioria dá provas, a cada vez que se deparam com ela nos uniformes dos militares. "Estão sempre a pedir que lhes arranjem uma."

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