Um grão de arroz
Uma coisa é certa: a cozinha portuguesa é uma delícia. Assim feita a declaração de princípios, ninguém poderá pôr em causa o meu gosto pelos deliciosos pratos portugueses. No dia-a-dia, o princípio da realidade que conjuga tempo e dinheiro reduz a escolha gastronómica a um simples peixe grelhado ou uma costeleta de porco frita. Saboroso, se o estabelecimento for bem escolhido. Mas seja qual for o prato do dia, este é quase invariavelmente acompanhado de... batatas e arroz. Batatas e arroz? No mesmo prato, para acompanhar carne ou peixe, mas como é possível? Consegue-se imaginar a expressão que se instala na cara dos franceses. Além de que pesquisas aprofundadas, mas sem qualquer valor científico, provam que não é a única nacionalidade a mostrar-se perplexa. A razão desta associação de dois amidos juntos no prato é desconhecida. Ela reflete provavelmente a necessidade de "servir bem" e barato. E serve talvez também para substituir os legumes, subentendidos verdes, que não as batatas e que são frequentemente pedidos pelos franceses. Salvo raras exceções - afinal a cozinha é também o prazer da invenção e da criatividade -, nos outros países grandes produtores e consumidores de arroz na Europa (Itália, Grécia, Espanha e França), a espantosa mistura destes dois açúcares de absorção lenta é excecional e, em França, totalmente inimaginável. Mas a presença do arroz ao lado das batatas no prato português não é a única causa de espanto do francês. Na verdade, é muitas vezes ocasião de um episódio digno de um filme de Charlot, cómico para o espectador, um pouco mais dramático para o ator. Trata--se do teste do garfo, que eu alcunhei de "prova do arroz voador", com o qual se confrontam os meus compatriotas novatos. Pois para os franceses, um garfo segura-se com a mão direita, enche-se de comida com a ajuda da borda do prato, de um pedaço de pão (arroz e pão?) ou, à falta dele, dos dedos! Em resumo, como se se tratasse de uma pá, com a mão esquerda a descansar sobre a mesa. Eficaz, mas não muito elegante. Pelo contrário, não se pode deixar de admirar o número de prestidigitação levado a cabo pelos portugueses. Eles socorrem-se de uma faca na mão direita, a menos de um centímetro acima do prato, para encher o garfo que têm na mão esquerda, antes de o levarem à boca sem deixar cair o que quer que seja. O francês, se for educado, tentará imitar o seu vizinho de mesa. Mas com o cotovelo demasiado elevado, a mão tremente, o garfo demasiado cheio - não esqueçamos que está na mão esquerda! -, a operação pode revelar-se uma catástrofe, em especial no caso do arroz malandrinho, com molho, com metade dos grãos a acabarem com frequência no colo do conviva. A experiência pode revelar-se traumatizante, garanto-vos: há quem já esteja na sobremesa enquanto o comensal tenta ainda seguir os procedimentos segundo as regras da arte, suando com a ideia de espalhar o seu arroz por todo o lado, corado do esforço e resistindo à tentação de retomar a utilização do seu garfo-pá. Envergonhado com a sua falta de jeito e invejoso também da destreza e da elegância dos portugueses. Mas como é que eles fazem? A verdade é que os lusitanos não descendem todos da casa de Aviz e não tiveram todos cursos de boas maneiras na escola. Eu continuo à procura do manual de aprendizagem do perfeito manejador de garfo lusitano ou então de um vídeo prático que possa facilitar o aperfeiçoamento rápido da técnica do "arroz voador".
Os portugueses são de longe os maiores comedores de arroz da Europa, 18 kg por pessoa, por ano. E consegue-se compreender que a gramínea - introduzida pelos árabes no séc. VIII - seja servida com tanta frequência à mesa. O arroz é sem dúvida um dos ingredientes que mais contribui para tornar a cozinha portuguesa misteriosa. Se bem que em muitos aspetos ela tenha um aspeto familiar, noutros ela é, pelo contrário, incrivelmente exótica, devido às associações inéditas aos olhos de um francês: arroz de feijão, arroz de marisco, arroz de pato, arroz de ervas aromáticas, arroz de bacalhau malandrinho, etc. Então porque não arroz e batatas?
Correspondente em Lisboa da radio France