Um governo que não se arrepende (e um trio que não se compreende)

Publicado a
Atualizado a

A empenhada tentativa do país político -- Presidente, primeiro-ministro e líder da oposição -- em fazer esquecer estes dias tem sido surpreendente, ainda que evidente no seu propósito. De momento, não convém a nenhum dos vértices deste triângulo que a situação se degrade ao ponto da irreversibilidade. De momento, claro.

A Marcelo preocupa o peso histórico de duas dissoluções numa só Presidência, com o risco ainda bem presente de o PS tornar a ser o partido mais votado -- e não o seu. A Costa incomodaria o atestado de inépcia que seria, para um político tão experiente, perder uma maioria absoluta em apenas nove meses. A Montenegro, mais do que obviamente, preocupam as sondagens e a dificuldade que teria em conseguir uma derrota digna o suficiente para se aguentar até (e após...) eleições europeias.

Marcelo, convenientemente, enviou o diploma da eutanásia para o Tribunal Constitucional entre o debate de urgência da crise política e a moção de censura à crise política. Costa, como se nada houvesse ocorrido, partiu em tournée promotora do PRR e bateu palmas à ascensão de João Galamba a ministro. Em plenário, responsabiliza "a direita" pelas crises de um governo que é seu. Montenegro, com franqueza, não sei, nem percebi. Uma coisa é certa: os holofotes dispersaram e Fernando Medina tem, por agora, permanência assegurada no ministério das Finanças. Pode agradecê-lo à gestão de calendário destes três homens.

Coincidentemente, além da queda para a tática, o trio foi pouco fiel à sua posição original no caso da indemnização a Alexandra Reis. Se pensarmos bem, os três protagonistas comungavam exatamente do mesmo princípio: não sabiam e não achavam bem. Ora, olhando para todos os nomes da remodelação de governo anteontem empossados, é difícil entender o seu silêncio.

Então o sr. primeiro-ministro, que não tinha nada que ver com isto, nomeia ministra alguém que até há dias era secretária de Estado de Pedro Nuno Santos, que se demitiu? E o sr. Presidente aceita que o homem que era adjunto no gabinete do ministro demissionário suba a secretário de Estado? É isso?

Paradoxalmente, o PS demite em nome da responsabilidade política e promove independentemente da irresponsabilidade dos seus governantes. Até a remodelação para emendar uma trapalhada foi feita com gente que, no fundo, partilhava gabinete com a trapalhada.

A ideia que fica -- tanto do debate de ontem como da cerimónia de remodelação na véspera -- é que o PS não aprendeu nada com o que se passou nas últimas semanas. Assistindo a ambos os momentos, torna-se difícil acreditar que o governo retirou as devidas ilações do escândalo de Alexandra Reis e que turbulências semelhantes não se repetirão este ano. A velocidade com que surgiu nova trapalhada, desta feita na Agricultura, comprovou-o.

O desgaste já não é de mês a mês, é de hora a hora.

Acerca dos recentemente promovidos, estamos a falar de pessoas que trabalhavam no mesmo corredor, no mesmo ministério, com precisamente os dois governantes que sabiam demasiado para o conseguirem negar e fugir à exoneração.

Marina Gonçalves, que chegou à tomada de posse lado a lado com Pedro Nuno Santos, não falava com o seu ministro? Frederico Francisco, que era do núcleo do próprio, não deu conta da resposta oficial que o ministério deu, a 26 de maio, quando o Expresso questionou o governo sobre a indemnização alegadamente milionária? O pagamento de meio milhão de euros a uma administradora era algo tão banal para a equipa das Infraestruturas que ninguém conversou sobre isso?

Permanecerem no executivo seria grave. Serem promovidos depois disto é só inacreditável.

Que o PS julgue que pode tudo não é surpresa para ninguém -- basta ligar a televisão. Que a chefia do Estado e a liderança da oposição sejam complacentes com a ausência de limites é algo verdadeiramente preocupante.

A saída da "senhora" agrícola, como a batizou António Costa no hemiciclo, não diminui a gravidade de todos os que ficaram.

E que já não deveriam estar.

Cronista

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt