Um golpe de Estado à portuguesa é assim: armas, 'Chaimites'... e as lojas abertas

A revolução na montra Frente a frente junto ao Tejo
Publicado a
Atualizado a

Numa montra pintainhos amarelos, noutra coelhos anões. Lá dentro é uma gruta estreita de tempo parado e poeira fina, a mesma que se respira e cobre tudo, sacas, comedouros, gaiolas grandes e pequenas, numa desordem de quinta. Há pombos correio, periquitos, peixinhos vermelhos, um galarote que de cinco em cinco minutos se anuncia estridente, e este transporte súbito, num passo, para um mundo sépia. Pediu-se uma viagem? O senhor João, Rodrigues de apelido, conduz. Também ele sob a mesma poeira adocicada, cabelo em crista e olhar fino a confirmar dos 72 anos 54 aqui, entre os bichos do Aviário de Lisboa.
É o número 160 da rua do Arsenal, a meio entre a Praça do Município e o Largo do Corpo Santo, naquele dia lugar do confronto entre as forças da revolução e as da situação. No vaivém de clientes, do brasileiro com anéis de ouro que demanda faisões à senhora que vem da Penha de França por dez pintos, desenrola-se a memória.

Como de costume, veio da casa no Bairro Alto para o trabalho às oito e tal da manhã, rua do Alecrim abaixo. Ensonado, dá de caras com a tropa ao fim da calçada. «Apanhei um susto... Não tinha ouvido a rádio, não sabia de nada. Lá me informaram de que havia um golpe de Estado e ninguém passava. Mas mal lhes disse que trabalhava aqui e tinha de tratar dos bichos deixaram-me vir. "Não será nada de muito grave, pensei eu..."».

memória em trespasse. Levou tempo a entender quem eram os «maus» e os «bons», para que lado pendia o vento. Não, frisa, que não soubesse quem eram os «maus». Mas como distingui-los no meio dos uniformes? «A gente não sabia no que aquilo ia dar... Com a PIDE não se podia abrir a boca, era melhor esperar para ver.» Receoso, «só metia a cabeça para fora um bocadinho». Até que começaram os tiros, seriam umas onze horas. Viu a vida a andar para trás. No meio da algazarra dos bichos, «assustadíssimos», ligou para a mulher, cantora do coro do São Carlos. «Tinha ido para o Teatro, mas mandaram-na para casa. Eu tive de ficar aqui mais umas horas, até que as forças armadas me deixassem sair.» O susto não impediu que no dia seguinte, apesar das recomendações ao povo para se manter sereno e em casa, voltasse à loja: «Os bichos comem todos os dias!» E assim foi nestes trinta anos, que o credo de «cumprir» haja chuva, desacato ou revolução (para não falar de greves e dias sem carros) lhe ficou do regime como datada herança.

Das contas da História não tem dúvidas: «Foi por bem, ficámos melhor. Marcelo Caetano nem era muito mau, mas bom não podia ser: era discípulo do Salazar.» Ai ai, geme a cliente da Penha de França, que com os pintos já pagos e embrulhados ficou para ouvir da madrugada em que a sede da Legião Portuguesa - hoje Comando da PSP -, ao lado da sua casa, acordou em irremediável tumulto: «Deixe que os de agora não aprenderam com ele, mas têm a lição na ponta da língua.» O riso que se segue sabe a dias contados: à porta do Aviário o cartaz de trespasse desenha-lhe o mesmo destino de tantas outras casas do Arsenal.

O do café Glaciar Ártico, por exemplo. Foi lá, garante a proprietária do número 100, 1.º andar Frente, o resistente Externato Continental, que ocorreu um dos momentos fulcrais do dia. «Um dos oficiais da ditadura foi telefonar aos superiores, para saber se podia render-se. Então, na altura não havia telemóveis!» Entre risos, Ivone Costa Santos jura que os termos da anedota lhe foram relatados pelos donos do café, já desaparecidos. E que da sua janela feita primeiro balcão viu, com o marido já desaparecido, viu «a história em directinho»!

tudo a brincar. Moravam do outro lado da ponte, no Laranjeiro.
Alertados por um vizinho de que «havia qualquer coisa», não antecipavam o espectáculo que era, às 8.30 da manhã, o aquartelamento das forças do governo no Largo do Corpo Santo. «Tropa armada, Chaimites, metralhadoras ... Nunca visto.» Mandaram-nos arrumar a viatura...

e seguir a pé. Na escola, que ensinava dactilografia, entre virtudes em desuso como mecanografia e estenografia (hoje trocadas por «contabilidade e informática») ainda apareceu um pai com a filha pela mão - as multidões que passavam as barreiras da tropa! -, mas foram mandados para casa. «Era uma responsabilidade muito grande ter gente cá dentro», comenta, mesmo se confessa que ela e o marido acharam que «era tudo a brincar, nem nos apercebemos da gravidade da situação». A dada altura, sobretudo a partir do tiroteio, lá lhes ocorreu que a coisa podia dar para o torto.

«Aí assustei-me. Liguei para o Banco Espírito Santo para ver se conseguia levantar dez contos ou assim. Responderam logo que estavam as contas todas congeladas... Fiquei numa aflição.» Que havia de ser maior: detentora de acções de companhias ultramarinas por via do gosto do marido em «jogar na Bolsa», Ivone afirma-se «depenada» com as consequências do dia. «Perdi quatrocentos contos, naquele tempo uma fortuna! Ainda hoje tenho os papéis... Mas não valem nada.» Dos reveses que lhe atravessaram os 66 anos, da riqueza volatilizada à morte acidental de marido e filho, Ivone sublimou uma determinação doce. «Até certo ponto, todos ficámos contentes com a revolução. Andávamos muito metidos na casca, somos mais livres, mais abertos. E aqui, em termos económicos, acabámos por recuperar alguma coisa: veio muita gente de África que precisava de aprender um ofício...»

Sanduíches esgotadas. Dos ofícios da rua avulta o das casas de bacalhau, pilhas salgadas em duelo com barricas de atum e outros arrojos piscícolas. Em nenhuma, porém, testemunhas da época.

O mais que há é António Alves Joaquim, 60 anos, na Pérola do Arsenal a aviar o dito fiel amigo como outrora na Charcutaria Favorita, na rua do Ouro, aviava «sandes de pão de centeio com fiambre». Foi lá, ou melhor, no Rossio, que a revolução o apanhou.

«Quando cheguei, às oito da manhã, dei com um canhão apontado ao Quartel do Carmo. Está a ver o que isso é?»

Faz pausa para garantir que sim, que se vê no claro palco da manhã o monstro bélico em cerco à GNR. E - como não? - lá passou para a loja, sem mãos a medir. «A malta achou que ia faltar a comida, levou tudo.» Soldados com fome, nem um para amostra.

Mas António estava rendido: «Se viessem, não lhes vendia nada.
Dava-lhes.»

Outro António, mas Barros, julga-se o último dos moicanos: «Infelizmente para mim, desse tempo sou o único aqui na rua.» Não é verdade, mas isto de derradeiro guardião da memória não lhe cai mal. Encena quadros, faz a sinopse. Foi aqui, sob a corrediça porta ondulada do número 80, que espreitou, com o primo já desaparecido, o choque entre os dos cravos e os outros --- se bem que aí flores não havia ainda. «Não percebia nada, nem torcia por ninguém... Não sabia se era para bem, se era para mal.»

terra de ninguém. António e a mulher, Rudesinda - Sinda, por favor, rogam em risada os dois - atropelam-se no relato. Ela ficou em casa, com o filho de seis anos, ele como todos os dias veio para a loja. «J.M. Barros Rodrigues, filatelia e tabacos», hoje dele, na altura do tio: cinco metros quadrados com um balcão a meio, trincheira para a História. «O mais importante que se passou nesse dia foi mesmo aqui em frente. Tive bilhete de primeira fila para o 25 de Abril!»

Veio de metáfora, no 24 (eléctrico, também extinto). Civis viu poucos, «meia dúzia atrás das barreiras». A ele e ao primo, empregados de uma loja na terra de ninguém, os militares do regime avisaram: «abrir é impossível». Mas a propriedade privada falou mais alto, e deixaram-nos ir «ver das coisas».
Ao longo da rua, nas janelas dos ministérios, a curiosidade ganhava ao medo. «E nós sem perceber nada. Nem abríamos a boca... Depois é que uns soldados nos vieram dizer: "Somos pela liberdade, isto é uma ditadura, tem de acabar"». António concordou. «Falávamos sempre às escondidas... E nem era só a PIDE: um vulgar polícia de giro podia puxar do cassetete e, com ou sem razão, levava-se uma surra. Foi bom, foi mais bom que mau, mesmo se depois houve uns excessos.»

Em pulgas, nem se lembra do que comentou com o primo. Sabe que ligou à mulher para «ficar quietinha em casa com o puto». E depois foi aquilo. «Mesmo aqui à frente, apontaram as armas uns aos outros... Os soldados de joelhos no chão, os oficiais a conferenciar...

Falaram, falaram, e no fim abraçaram-se... E pronto: por volta das 13.30, duas da tarde, desandou tudo. Almoçar juntos, quem sabe.»

E depois? Depois foi outro País. Três ou quatro dias mais e, diz Rudesinda, foi o 1.º de Maio, vieram «com o puto às cavalitas comemorar na avenida». Uns dias, umas semanas, uns meses mais e, diz António, «foram os tais excessos, aquela estupidez das ocupações, até tive de guardar o meu senhorio em casa, queriam-no matar, coitado». Uns meses mais e foi a descolonização, uns meses mais e foram as eleições, uns anos mais e é agora, a mesma rua que não é a mesma, as mesmas pessoas que são outras.

E depois? Depois, diz Ivone Costa Santos, foi tudo para casa ver televisão. «Tal qual o que tínhamos visto aqui. Tal qual.»

memória

Na manhã de 25 de Abril, um dos momentos mais tensos e decisivos do golpe acontece, manhã cedo, junto ao Terreiro do Paço, na Avenida Ribeira das Naus e na Rua do Arsenal, no centro de Lisboa.

As forças revoltosas, do Movimento das Forças Armadas, e unidades fiéis ao regime de Marcello Caetano estão frente a frente. O confronto parecia iminente. Blindados do Regimento de Cavalaria 7 tomam posições contra as forças de Salgueiro Maia. Mas a rendição acontece. Sem tiros.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt