Um filme que veio do frio
Uma ficção científica portuguesa? A questão do género é muito relativa, afirmou Luís Galvão Teles numa troca de ideias paralela à entrevista, mas não deixou de reconhecer Gelo como um filme "diferente" no panorama cinematográfico português.
É que, de facto, não há como escapar à sua simpática estranheza... Entramos no filme escutando uma jovem e doce voz espanhola a contar-nos como Johnny, um cão, corre, corre sem parar, numa urgência desmedida, ignorando para onde vai. Só sabe que tem de ir.
E é desta forma encantatória que Gelo nos convida a mergulhar em histórias que se sobrepõem, partindo da protagonista, Joana (Ivana Baquero), que as inventa ou que é perseguida por elas, num sonho ou num passado em que se chama Catarina.
Essas fronteiras vão-se tornando cada vez mais imprecisas, à medida que vamos tomando conhecimento de um projeto científico sobre a imortalidade humana, de que Catarina terá sido cobaia, gerada a partir do ADN de um cadáver congelado, com mais de 20 mil anos... Sim, não é possível desfazer um pouco da costura narrativa de Gelo, sem se deixar o leitor baralhado. Mas isso não é negativo. Justamente, é numa camada densa de mistério e romance que se procura envolver o espectador, nas muitas possibilidades de uma só história.
Há uma candura muito particular em Gelo, vinda dos próprios realizadores: a sua genuína admiração e respeito pelo argumento de um filme, evocando-se, a certa altura, Billy Wilder e John Ford, em jeito de piscadela de olho a cineastas que foram mestres nessa laboriosa arte de contar. Ainda agora estreou nas salas um filme sobre um notável argumentista, de certa forma caído no esquecimento (pelo menos, para as novas gerações), Dalton Trumbo. Como se, de repente, estes dois filmes nos viessem lembrar de que os sonhos só existem se alguém os deixar escritos.